19.11.05

O sono do sol


Sim eu tentei ler os «Cantos» do Ezra Pound comparando o original inglês com a tradução portuguesa, que hoje comprei. Eu sabia que era só a ilusão de um instante, por não ter tempo para mais. Eu sabia também que era só para me entristecer, por saber que a tradução trai. Mas eu fi-lo, sabendo antecipadamente desta tristeza. Pound escreveu «sun to his slumber», a tradutor pôs «sol indo ao sono». É o que dá vontade: ir ao sono onde todo o tempo é possível, toda a ilusão é um sonho.

O amarelecer da memória


Estive hoje no local da total distância, no tempo da absoluta indiferença. São estas as viagens que qualquer pode fazer, não saindo de casa, encerrado no confinado de um quarto, encerrado no interior de si. Há quem o faça pela madrugada, enquanto a cidade dorme, ou domingo à tarde, que é quando a tristeza dói mais, por parecer única. Estive hoje suspenso a rever-te, antiga fotografia de uma viagem que eu não fiz a um destino onde nunca estarei. Há momentos assim: ferem-nos a retina, arquivam-se no cérebro, ficam, como as gravuras dos velhos livros de um parente morto, amarelecidos e para sempre esquecidos, no alto de uma estante, na prateleira do nunca mais.

17.11.05

A única excepção

Momentos depois, como uma lanterna mágica, o sol coloria as nuvens, projectando-as no cenário do firmamento azul. Não sei o que pode ter havido neste local ou na ideia de guardar dele esta memória. Eu, que raramente fotografo, como se não quisesse aprisionar o tempo que passa, consigo hoje transpor-me para esse passado, porque o quis. Lamento tudo quanto se passou, anularia toda a história, se me fosse isso possível, tudo com uma única excepção: esta, precisamente.

Talvez fosse


Talvez fosse a tonalidade violácea daquele céu, ou porventura aquela rede incerta, armada entre hesitantes postes. Era seguramente a tristeza punitiva daqueles poentes. A verdade é que não há amargura maior que a de um mar longínquo, saudade pior que a de não ter um lar. Afogando-se na linha do horizonte, o sol parece desistir de viver. Regressa sempre amanhã, chamando esperança à ilusão, convocando-me para o festim do seu içar-se soberbo nos céus do eterno retornar.

11.11.05

Saudades da onda curta


Neste mundo dominado pela televisão ainda há quem ouça rádio. Neste mundo em que ainda há quem ouça rádio, ainda há quem ouça emisões em onda curta. Nasci em Angola e para mim a onda média foi um luxo, a frequência modulada um espanto de progresso. Lembro-me do quadrante da onda longa, de onde se escutavam emissões em língua árabe. Lembro da minha mão de garoto agarrada ao botão do sintonizador, a corrigir, já cansada, o «fading» do sinal da onda curta, a tentar ouvir para além dos «parasitas», a anotar as frequências nocturnas e as diurnas. Vi agora que a Rádio Praga, na sua edição de domingo, pelas 10:00 GMT, trata do assunto: «Os checos têm sexo na cozinha?». Um assunto a não perder. Basta sintonizar nos 25 metros, pelos 11 600 kilociclos ou na banda dos 41 metros, nos 7 345 kilociclos. A propósito, urge recordar que, de acordo com uma notícia recente, os portugueses preferem a cozinha para comerem sim, mas as suas refeições. Atenção, pois, compatriotas: ao preço a que está o metro quadrado, rentabilize-se o investimento. Para saber como, ouçam a Rádio Praga, em onda curta, domingo, às dez da manhã.

7.11.05

A ilusão do amanhã


Aleppo! Vista de longe, ao lusco-fusco, a citadela dir-se-ia um pudim. Por aqui passaram caravanas de mercadores da Mesopotâmia, da Pérsia e da Índia, ao encontro de comerciantes vindos de Veneza e de Génova. Há quem diga que é das mais antigas cidades habitadas. Reconhecem-lhe população dezoito séculos antes de Cristo. Foi arrasada pela guerra dos Persas e dos Mongóis, destruída pela surpresa dos vários tremores de terra. Entre o que ficou, vagueiam nocturnas prostitutas russas, restos de um império arrasado pela ilusão do manhã.

6.11.05

Um Dickens animador


É bom ser-se criança, nem que seja numa tarde de domingo e como criança ver-se a história de Charles Dickens. Começou a sua vida como empregado de um advogado. Talvez por isso a tristeza desanimadora de muito do que viu. Eu disse ver-se a história, e é disso que se trata. Graças à BBC, uma tocante animação.

Bez intima


Há momentos quando eram quase quatro da tarde em Lisboa, estavam sete graus em Moscovo. Os moscovitas com tempo, enquanto a noite se aproxima, podem entreter-se a ler no jornal de língua inglesa «Moscow Times» um artigo sobre um serviço de «escort» destinado a mulheres, «bez intima», ou seja, sem intimidade incluída, apenas a companhia. No essencial, nada de diferente do serviço que se poderia encontrar em qualquer grande metrópole.Talvez nem o preço divirja: setecentos rublos antes das onze da noite, mais caro a partir desta hora. Curioso, no entanto, é este parágrafo do texto: «You know, sometimes women are ashamed to meet their friends without a man, he explained, almost as if he were channeling Bridget Jones. Especially when all their friends are married». É assim na glacial Moscovo. Será assim mesmo nas tórridas capitais do resto do mundo?

Descartes, o nada e o tudo


Ligando a dúvida metódica de René Descartes aos herméticos e rosa-crucianos, A C Grayling escreveu no seu livro «Descartes: the life of Rene Descartes and its place in his times» [Free Press, 352pp, £20, ISBN 0743231473]: «Hermeticists and Rosicrucians shared the desire to discover methods that would unify all knowledge and allow the practitioner to discover anything and everything, moving from discoveries in one area of thought to discoveries in another by infallible means. This is what Bacon and Descartes sought too». É um momento curioso, o um como a soma lógica do tudo e do nada.