29.4.21

A assassina da Roda


Sob o título "A Desordenada Paixão de Apetecer", escrevi este texto para a folha de sala da peça de teatro A Assassina da Roda, baseada num romance escrito por Rute de Carvalho Serra, com encenação e interpretação de Maria Henrique. O contexto da narrativa, a condenação pela Casa da Suplicação, em 1772, de Luiza de Jesus, acusada de ter morto 33 crianças retirada da Roda dos Enjeitados de Coimbra. Assisti esta noite ao espectáculo no Teatro da Trindade. Interpretação magistral. E vim a este espaço, ao qual não regressava desde 2016 deixar memória do que redigi, antecipação do que me foi dado hoje sentir.



«Tudo se move num mundo de horror, o mundo dos expostos e dos enjeitados.

Horror, o dos enjeitados, «filhos da desgraça», frutos indesejados, tropeços à conveniência, sobrepesos à miséria de quem os deu à luz.

Horror, o do seu abandono, condenados à sorte logo no acto de terem nascido, a somarem aos que nem chegaram a ter vida própria.

Horror o que mostram os números sobre as taxas de mortalidade destes desgraçados, tomando como exemplo a cidade de Lisboa e, nesta, o Hospital Real de Todos os Santos, que D. João II mandara erigir em 1492, depois de autorização do Papa Sisto IV, e do qual fazia parte um “criandário” destinado precisamente a receber os enjeitados, incorporando o Hospital do Colégio dos Meninos Órfãos, criado pela mulher de D. Afonso III, e cuja gestão estava confiada, desde 1530, por édito de D. João III, à Congregação dos Cónegos Seculares dos Lóios:

«No ano de 1743 entraram no Hospital Real de todos os Santos desta cidade, pela roda e pelo portal da casa dela, 1.038 crianças expostas, a saber 545 meninos e 493 meninas; com 1.717 que no princípio se estavam criando, faz o número de 2.755. Faleceram das mesmas crianças, na casa da roda, e das que se tinham dado a criar, 778.»

Para tudo isto confluíam vários factores, desde logo a noção de legitimidade da filiação, apenas reconhecida quanto àqueles que fossem fruto de matrimónio legalmente reconhecido, o que logo escorraçava para fora da lei quem não tivesse essa origem tida por legítima.

Nasce aí o conceito de enjeitados, de que é espelho a lei máxima da época, concretamente as Ordenações Filipinas (Título 88, § 11), as quais, codificando a legislação antecedente, estavam em vigor desde 1603, sobrevivendo mesmo à Revolução de 1640. E que, nesta parte, reproduziam quanto constava já das Ordenações Manuelinas, suas antecedentes (Título 67, § 11), publicadas entre 1512 e 1514 e que em 1521 substituiriam aquelas.

Em tal corpo normativo provia-se sobre os enjeitados, sintomaticamente na parte em que tratava dos órfãos, como se de uma mesma categoria se tratasse, e de facto, pela antiga legislação, os expostos eram considerados órfãos e, terminada a sua criação nas Casas de Caridade, eram entregues aos Juízes do Órfãos para lhes dar tutor, o qual devia mandar-lhes ensinar qualquer ofício.

E assim rezava a lei sobre «as crianças, que não forem de legítimo matrimónio, forem filhos de alguns homens casados, ou de solteiros» provendo que: «[…] primeiro serão constrangidos seus pais que os criem, e não tendo eles por onde os criar, se criarão à custa das mães. E não tendo eles, nem elas, por onde os criar, sejam requeridos seus parentes, que os mandem criar. E não o querendo fazer, ou sendo filhos de religiosos, ou de mulheres casadas, os mandarão criar à custa dos hospitais, ou albergarias, que houver na cidade, vila, ou lugar, se tiver bens ordenados para a criação dos enjeitados; de modo que as crianças não morram por falta de criação. E não havendo aí tais hospitais e albergarias se criarão à custa das rendas do concelho. E não tendo o concelho rendas por que se possam criar, os Oficiais da Câmara lançarão finta pelas pessoas, que nas fintas e encarregos do concelho hão-de pagar».

É, pois, a norma legal o ponto interessante de observação relativamente a muitos dos conceitos da época.

Primeiro, o conceito de enjeitado, amálgama que abrangia, desde logo, a filiação fora de matrimónio, pelo que o enjeitamento era, antes de ser acto individual de repúdio, acto legal de exclusão.

Depois, a ideia de que homem casado poderia ser obrigado a sustentar seu filho ilegítimo, mas sendo filho de mulher casada já a lei não criava sobre elas tal dever, empurrando desde logo a obrigação de sustento e “criação” para as instituições públicas, tal como no caso de filhos de religiosos.

Mas não se ficava por aqui o preceituado legal, pois havia que levar em conta o estatuído nas leis que completavam as Ordenações Filipinas e muitas delas posteriores até à Revolução de 1820.

De acordo com as normas jurídicas de então, a criação dos expostos era entregue, como vimos, a Casas de Caridade, à custa do erário público, mas chegados aos sete anos eram entregues aos Juízos dos Órfãos que os encaminhavam ou para famílias de acolhimento ou para o mercado de trabalho, conforme o lanço que os abrangesse.

A prevalência do encaminhamento para o mercado de trabalho tornou-se clara, e de tal modo que determinação legal, promulgada pouco antes da data dos actos de Luiza de Jesus, determinaria que em relação a estas crianças, sendo difícil arranjar-lhes emprego, poderiam ser repartidas por entre os lavradores, que até aos 12 anos não lhe pagavam soldada, tendo assim o benefício desta mão de obra infantil gratuita, dando-lhes educação, sustento e vestido (Alvará de 10 de Maio de 1783 e posterior Decreto de 6 de Dezembro de 1802).

Relegados todos eles a serem criaturas de segunda, sujeitos à triste sina, «os de cor preta ou parda» eram, porém, declarados “ingénuos”, querendo isso dizer, considerados originariamente livres e não meramente “libertos” (Alvará citado § 7, o qual seria revisto mais tarde por provisões de 26 de Junho de 1815 e de 22 de Fevereiro de 1823), sendo que só em 1846 se definiu que os expostos filhos de africanos livres não seriam escravizados (Alvará de 11 de Fevereiro de 1846).

Institucionalizados, os enjeitados estavam à mercê de abusos e do aproveitamento das suas pessoas e de tal modo para fins tidos por «imorais» que um Alvará da Rainha D. Maria I, de 12 de Fevereiro de 1783, «dado em Salvaterra de Magos», determinou que os mordomos da Casa dos Expostos da cidade de Lisboa promovessem, admoestando ou mandando prender, pelo máximo de um mês, aqueles que procurando os internados «para o honesto trabalho e serviço», no entanto, «se apartam da honestidade e modéstia com que devem sempre proceder, sendo aliciadas por pessoas que as pervertam ou procuram perverter».

Subentende-se na contida linguagem legislativa do que se tratava, afinal.

+

É neste universo de sordidez pavorosa que a “Roda” surge como caridade entendida à maneira da época: caridade, porque tentativa de combater o infanticídio e o aborto, abrindo porta a que fossem recebidos, de modo anónimo, em instituição que era suposta assumir o encargo de cuidar da sua sobrevivência.

Só que, na prática, efeitos perversos surgiam a tornar abjecção o que teria na origem outra intenção, sendo lancinante a situação que se vivia em meados do século dezoito.

Logo o comércio das amas, fornecedoras de «leite mercenário», como numa expressão dorida lhe chamou Júlio Dantas, neste seu trecho que é o retrato tremendo do que era a repelência feita sistema:

«A Mesa dos Inocentes era o último recurso para o leite mercenário das amas. Algumas delas, para dobrarem a pataca de prata da criação de cada ano, saíam do Hospital Real com duas crianças penduradas dos peitos, levando, para o canto hediondo da sua alfurja de miséria a flor das suas vidas. Se alguma das crianças morria, a Casa da Roda lá estava, chilreando; trilando como um grande ninho; iam buscar outra. Se tinha a desgraça de resistir e de viver a criação estava paga até aos 7 anos.»

Mas não se quedava por aqui a triste sina destes deserdados, pasto de comércio e de  exploração mercantil, porque confiados a este amparo de aleitação, ficavam, quantas vezes, à mercê do infortúnio, em perigo da própria sobrevivência.

Retomando a dura denúncia de Júlio Dantas:

«Depois, deixada as mantilhas e o leite das amas, o Calvário dos expostos começava. Se elas os queriam ainda, podiam tê-los em casa mais cinco anos, sem receber criação e sem pagar soldada. Mas aos doze, o juiz dos órfãos arrematava-os a quem desse mais por eles; e se havia algum enjeitado enfermiço ou débil que não tivesse lanço, animal de trabalho que ninguém quisesse, boca inútil que  ficasse pesando no Cofre do Povo, a Roda enjeitava-o pela segunda vez, e lá ia, pobre Lázaro infantil, comer à Cadeia do Tronco na gamela dos presos, ou lamber com os cães na portaria de S. Bento da Saúde, o resto da sopa dos mendigos».

Enfim, visando pôr termo ao criminoso abandono de recém-nascidos, a Roda veio, afinal, permiti-lo a coberto do anonimato, porque nenhum esforço era feito para localizar os progenitores, alguns, aliás, eclesiásticos, outros de linhagem, cuja devoção e fama pública eram assim defendidas pelo manto da hipocrisia.

E até as próprias mães naturais os levavam para os recuperarem aos sete anos. Nasce aí a prática dos “sinais”, menções escritas ou físicas, apostas por vezes na própria roupa amortalhada que permitiria identificar aquela criança que ali fora deixada.

Era, enfim, o tentar evitar a morte certa através da escassa probabilidade de sobrevivência, a Roda tida, numa equação cruel, como o mal menor.

Local de acolhimento para as crias que a miséria não conseguia sustentar, era também lugar de albergue esconso para os filhos indesejados, frutos de amores clandestinos ou de abusos que assim se poderiam ocultar.

Para além disso, para os poderes públicos, era uma grosseira tentativa de inverter o decréscimo de população.

E, enfim, o encargo orçamental. Por Alvará de D. José de 11 de Fevereiro de 1775, manda-se cortar o tempo de permanência no Hospital dos Expostos que até aí era de nove anos e que somavam mais de novecentos por ano a somar aos «mais de quatro mil com trato sucessivo».

Legislação cruel determinava, entre outras cláusulas de exclusão, que «nenhum exposto, que exceder a idade de sete anos, possa entrar no Hospital por este título nem nele possa ser admitido como hóspede ou outro título que não seja o de artífice ou servente.»

Foi neste contexto que, a 10 de Maio de 1783 o Intendente Geral da Polícia Diogo Inácio de Pina Manique, fundador da Casa Pia, deu à Roda foros de coisa oficial, através de circular, ordenando a 
sua abertura em todas as «cabeças de comarca» de Portugal.

A Intendência Geral da Polícia fora criada pelo Alvará com força de lei de 25 de Junho de 1760, para coordenar as atribuições de polícia exercidas pelos magistrados judiciais. Dela dependia a Real Casa Pia, criada por Decreto de 3 de Junho de 1780 e responsável pela integração social e profissional de jovens com actividades irregulares ou marginais.

Foi seu primeiro Intendente o desembargador Inácio Ferreira Souto, que desempenhou um papel fundamental na perseguição à família dos Távoras. Diogo Inácio de Pina Manique seria nomeado em 1780, pela Rainha D. Maria I, e manter-se-ia em funções até 1805. A instituição seria extinta a 8 de Novembro de 1833.

Por todo o país se disseminam, em alguns locais com notável atraso, e sucessiva legislação tentou dar ordem à instituição.

À Circular de 10 de Maio de 1783 sucederam outras, bem como alvarás régios, como, por exemplo, a 31 de Março de 1787, a 5 de Junho de 1800 e 9 de Novembro de 1808, tudo se prolongando até quase ao início do século vinte.

Ao chegar a Revolução de 1820, com ela uma mescla de liberalismo e das ideias que na França após 1789 haviam levado ao Terror pela guilhotina, tida esta por forma “humanitária” de pena de morte, a situação destas crianças era lancinante.

No seu acolhimento cumpria-se o ritual: recebidas pela “ama rodeira”, eram limpas e registadas com detalhe e baptizadas, se não houvesse sinal de o terem sido, e enfim confiadas a amas externas para que delas cuidassem.

Amas mal pagas, com remunerações amiúde em atraso, fazendo daquela criação modo de vida, eram mãos que valiam o que valesse a moral e o espírito de compaixão de cada uma.

Em 1823, números relativos aos expostos da cidade do Porto mostravam que dos 31.257 enjeitados que haviam entrado na instituição entre 1803 e 1822 haviam morrido 20.975; em Lisboa os valores não eram muito diferentes. Facto é que foi este século um dos períodos mais negros no que respeita ao abandono infantil e em que as taxas de mortalidade atingiam valores que chegaram a mais de 90%.

A Roda seria formalmente extinta apenas a 21 de Novembro de 1867, entrando esta determinação em vigor no ano seguinte, mas a sua implementação materializada por fases, tanto que em 1888 ainda se tentava dar execução a uma alternativa a este modelo em prol de uma nova ideia assistencial, através dos hospícios, agora custeada pelas recém-criadas Juntas Gerais de Distrito.

A lógica subjacente alterou-se, pelo menos, em uma parte: terminou o anonimato do abandono, obrigando-se à identificação da progenitura.

Como contraponto a este sistema, surgiu outro que o penalizava: é que a recepção das crianças que fossem levadas por mão identificada, ficava dependente de aceitação, o que excluía do acolhimento uma parte não despicienda do total das que ali eram presentadas.

Mas regressemos ao tempo e ao local dos crimes de Luiza de Jesus.

Neste covil de infâmias, eis-nos em Coimbra, lugar de tal horror onde em 1785 seria construído o Cemitério da Roda quando o sepultamento dos enjeitados atingia foros de escândalo, com os bebés a serem diariamente enterrados junto à igreja de S. Tiago, na zona da praça do mercado de legumes, carnes e peixes, «aonde por mal sepultado, em termos que por muitas vezes têm sido descobertos por vários animais».

É por aqui que o crime individual se soma ao crime da sociedade: aquele, repugnante pela violência do infanticídio, este, nojento pelo comércio da vida, pela morte lenta a que condenava esta legião de crianças.

A história de Luiza de Jesus é parte de tudo isto.

Confessando, sob tormentos, o infanticídio de 28 crianças, teriam sido encontrados 33 corpos que foram levados à formação da sua culpa.

Do seu caso cura o livro A Assassina da Roda, de Rute de Carvalho Serra, jurista, especializada em criminologia.

Trouxe-nos a narrativa como romance histórico, contando a história no contexto de outras histórias de personagens da época, que vão desfilando como seu cenário contextual. E eis o que chega agora aos palcos, adaptação da própria autora e interpretação de Maria Henrique.

Visto do ângulo ficcional, lido nos documentos da época, sentido agora pelo teatro, o episódio traz à tona aquela mescla de ideias e sentimentos que determinam a verdadeira e legítima compreensão histórica. 

E com isto termino esta breve nota de apresentação.

No imediato, o horror dos factos, a morte de inocentes, alguns desossados, misto de «ambição e fereza» como lhe chamou a sentença que a condenou, ao «monstro de coração tão perverso, e corrompido, de que não haverá facilmente exemplo no presente século».

Ao contraponto dessas mortes infames, a pena de talião da morte da infanticida no patíbulo, sujeita à pena capital, esta cometida com atrocidade.

A 1 de Julho de 1772, após três meses de detenção, os juízes da Casa da Suplicação em  Lisboa sentenciaram, em recurso, a infanticida a desfilar com baraço e pregão pelas ruas da cidade, ou seja, levando ao pescoço a corda em que seria enforcada e com um oficial de justiça a proclamar os crimes e as penas, para que disso ficasse clamor público.

A condenação era a de que morresse, mas não sem que antes lhe decepassem as mãos e «atenazada»  fosse, o que vale dizer queimada com um ferro em brasa; morte sim, enfim, não pela sufocação de uma corda que a asfixiasse, mas pelo garrote que a isso juntava a lenta perfuração do pescoço.

E, enfim, «para que nunca mais houvesse memória de semelhante monstro» seria queimada e as cinzas dispersas, para que não pudessem ser recolhidas.

Condenação no plano civil, era também sentenciada no plano religioso, porquanto, incinerada e dispersas as cinzas, ficaria privada de enterro religioso.

Juntando à infâmia da pena, somava-se a sua condenação nas despesas do processo, calculadas em cinquenta mil réis.

Choca à nossa sensibilidade esta crueldade da Justiça.

E, no entanto, se pode ser considerada pena mais severa aplicada a uma mulher de que há memória em Portugal, não foi caso único.

O registo da pena capital impressiona até pelo que abrangia e pelo modo como se materializava.

Dois anos antes, tinham sido enforcados o Juiz dos Órfãos de São Sebastião da Pedreira e o seu escrivão, em 1769 outro juiz e seu escrivão por furto do «cofre das décimas». No ano de 1773 um 
armador da Patriarcal de Lisboa, sentenciado por lançar várias vezes fogo à Igreja, foi queimado vivo. Acusado de ter atentado contra vida do Marquês de Pombal, um cidadão foi atado a quatro cavalos, arrastado, despedaçado, cortadas as mãos e, enfim, queimado. Em 1781 dois espanhóis são enforcados e esquartejados, por mortes e roubos.

Também mulheres não foram poupadas à morte com suplício antes da execução. Assim, em 1725 uma escrava acusada de matar o seu senhor com veneno; e no próprio ano de 1772, outra escrava que  ajudara a matar o seu amo foi atenazada, cortadas as mãos e depois de morta, a cabeça decepada antes de ser enforcada.

A exposição da cabeça cortada fazia parte do ritual macabro visando dissuadir e prevenir pelo pavor.

Justiça de classe, a este cortejo de sofrimento escapavam, salvo excepções, de que os Távoras foram cruel demonstração, os de condição nobre: a decapitação a que eram sujeitos era tida por forma de compaixão, porque instantânea a dor.

Visto hoje, perguntamo-nos se tudo isto não poderia ter sido tratado como caso de loucura e, por isso, com a terapia psiquiátrica. Nada disso existia então. Vigiar e punir eram então e foram-no durante décadas, realidades indissociáveis, os possuídos de patologias da mente confundidos até com os que, em pecado, pela feitiçaria e bruxaria atentavam contra a religião. E essa a pista, qual ritual satânico de magia negra, que o livro de Rute Serra nos deixa.

História de malvadez, de malignidade, de cadeias de união no sofrimento, paixão tumultuosa, «essa desordenada paixão de apetecer», enfim, é toda uma sociedade que é assim desventrada.

Ao chegar ao fim, exaustos, os sentidos, leitores e espectadores anseiam por um momento que lhes restitua na vida a bondade, à alma, a doçura da paz. Breve intervalo seja.»

18.9.16

Infinito Majestoso

Escrevi este livro em 2013. Editei-o pela Labirinto de Letras, uma aventura editorial de que sou o incauto mecenas. A capa é uma pintura do Hugo Bernardo. O trabalho gráfico, incluído o do miolo da obra do Rui A. Pereira. Decidi-me a deixar aqui o texto para que quem quiser o possa ler.



1.



Escrevera um livro sobre sentimentos com uma história ficcionada. Quando o leu, temendo-o autobiográfico viu que era sobre a vida que poderia ter tido. Agora, sentado num cubículo da existência, imaginava um livro sobre ideias. O medo da ficção levava-o para a tentação da realidade. Havia em si algo essencial que tinha, porém, deixado de existir.

Todos os dias, pelas quatro da tarde, naquele local, surgia, certa pelo relógio, a hora de visita. Esperou a sua vez meses a fio, seguro da existência de um mundo exterior e de alguém que dali o descobrisse. Até ao momento derradeiro, quando todos os outros regressavam taciturnos, consolados pelo acto triste de ser-se visitado, nunca desistiu de pensar que um dia isso também lhe sucederia, tornando-se possível. 

Foi então que Deus teve piedade: transformou-lhe o mundo carnal existente no mundo imaterial dos conceitos. A vida tornou-se uma ideia. Perdera substância.

Naquele local, diga-se, Deus não era uma questão de crença, uma eventualidade de fé, sim produto da gestação humana. Nascera prematuro e devia a vida à pouca medicina de um enfermeiro, único amparo então possível em lugar de pedras e devastação, que acorreu quando a mãe, a esvair-se, suplicava, rouca, que se trocasse a sua vida por aquela vida, mordendo-se de dor e pena. Não muito longe dali o mar rugia ferocidade vingativa. Foi assim que sucedeu o facto de ter sobrevivido, ainda sem saber hoje para quê, forma de não alcançar do existir a importância.

Teria agora mais de cinquenta anos, rosto escalavrado e olhos recolhidos, a esconderem o interior de vida incógnita. Quanto à própria idade reinava incerteza, por haver dúvida quanto ao modo de a calcular.

Nunca se lhe ouvira história sobre família que tivesse, nem relato daquela outra gente que lhe pudesse ter surgido como parentela e a quem então quereria, querendo-os até que não o quisessem. Nem amigos sequer ou vagamente conhecidos que pudesse referir. Nisso tudo se passava no condicional, espécie de vida hipotética pela negativa.

Diziam que se chamava João. Quando ali dera entrada, vindo de uma esquina que ajudara a conspurcar com a sua miséria real, tornando-a tão repelente como o desinteresse dos que se agoniavam consigo, evitando-o, não trazia documentos nem parecia querer dizer onde se poderiam encontrar. O mutismo aparentava ser a sua defesa. Olhavam-no desconfiados. O mundo torna-se escasso de piedade para com os caídos.

Iniciara-se o vazio que fez todos os outros sentirem-se excrescência na sua vida, horror por causa do qual dirão, se chamados a pronunciarem-se sobre si e não o serão, nada terem a ver consigo. 

Surgiu-lhe, pois, o mundo como ausência. As pessoas haviam-se retirado de si, ausentando-se, gerando a rarefação em torno da sua pessoa. Mas ele não dera conta.

Em vez de ter inventado biografia, fantasiou corpo. Fez-se homem, dir-se-ia, para poder ser Deus. Em momento de êxtase deu-se a vertigem da passagem. Foi aí que o diagnosticaram, à traição, quando perdera a vigilância sobre aquela sua outra pessoa.

Como todos os deuses, também ele tinha um Céu. A diferença é que o tinha perdido na voragem da Terra. Passava as noites olhando, absorto, o firmamento, mesmo quando as nuvens lhe roubavam as estrelas. A abóboda celeste girava sobre o seu mundo imóvel, regressando cada noite para visitá-lo. Apenas a lua marcava a diferença, enigmática na sua regularidade. 

Uma vez alguém, divertido em humilhá-lo, perguntou-lhe se no seu Céu existiam anjos. Foi a primeira vez que, ao olhá-lo, os da Humanidade de todos os demais se perguntou se não estaria cego, a expressão imóvel, os olhos indiferentes. Como se a vigília fosse evasão de um leito inútil.

Era, porém, uma Humanidade pequena em número e escassa de subtilezas. A rudeza convive com a simplificação das formas e a singeleza dos conteúdos. E expressa-se pela indiferença. Assim era ali, a tarde gelada, pouco antes da hora de recolherem para jantar.

Naquele lugar, diga-se, “A Humanidade” era nome alcunhado de uma ala das enfermarias, onde se arrecadavam os mais mansos, aqueles que podiam passear a indiferença pelos corredores desertos do antigo convento, à espera de alguma coisa indefinida que tivessem oportunidade de evitar, mas cuja inexorabilidade lhes ditava a sorte, feita destino. Eram criaturas vagas na sua errância sonâmbula.

Era aquele o local de indivíduos que tinham deixado de ser pessoas. Conheciam-se pelo número da cama, antecedido pela letra da camarata. Os números mais altos eram os dos mais velhos, porque a lotação era limitada e quando se chegava ao número um percebia-se que não podia haver zero. Por isso estava tudo em numeração romana, para que o zero não tivesse qualquer oportunidade. 

A Natureza sempre teve horror ao vazio, a ideia do nada é-lhe estranha. Mesmo naqueles corredores escrupulosamente encerados, nada era uma inviabilidade. Talvez por isso o sítio estivesse sempre em construção e, construído o novo, logo entrava em reparação. Havia uma superstição da maléfica imobilidade.

Um remoto eco de passos ou reflexo de luz, solar ou eléctrica, simulavam presença, corpo, ser, existência. Ao aproximar-se a penumbra, a noite sozinha povoa-se de seres imaginários. Era a hora dos inquietos, dos que têm o dever de dormir e no sono o pesadelo.

Havia noites em que, porém, o silêncio fazia medo, dias em que a algazarra dos circunstantes dava vontade de gritar. Um dia, um deles suicidou-se sem razão que se quisesse conhecer; por umas semanas “A Humanidade” ficou triste, por faltar um número, e ninguém sabia quem o substituiria para que o zero impossível não surgisse, e assim o vácuo na forma de ausência de qualquer coisa que fosse.

Talvez tivesse sido o oblíquo do Sol e o reflexo da sua luz num instante do imenso vitral. O arco-íris, soma refractada de uma luminosidade branca que é calor, projectava-se, inevitável, na parede em frente do refeitório, onde as bocas ruminantes, mesmo até as desdentadas, almoçavam sopa de couves tristes e uns peixes em escabeche que só um mar ignoto e ressequido de salinidade poderia ter albergado, mumificando-os para os tornar de vida em alimento rude. E Deus sorriu, uivando rouco como um cão.

Naquele dia começou esta história. Aquele sorriso, feito de animalidade e assim de ternura só, carinho instintivo e primitivo, sem mais razão, afinal como fora no momento inaugural da felicidade entre os homens, era a devolução da paz que, fogo primitivo que ao Humano tivesse sido roubado.

Alumiando-se pelas noites de eucaristia pagã, palmilhando corredores e seu labirinto, enclavinhando nas mãos tochas fumegantes, velas cuja luminosidade bruxuleava mesmo no segundo em que, incertas, quase se lhes fenecia o sopro de luz, indecisas acendalhas, homens, homens que poderiam ser os mesmos homens de todos os tempos e de uma ininterrupta Humanidade, saíam de lugares desconhecidos, caminhando para parte nenhuma, celebrando a comunhão da substância num corpo sacrificado pelo esgotamento de si. 

Em pacto de silêncio, bocas contidas, eles eram na expressão de culpada agonia, crime feito expiação de todos os demais crimes por penar. Irrealizados. Monstruosamente feridos.

Agora, porém, contagiados pelo riso, como crianças para quem a irrequietude é contentamento, agitando no interior dos seus seres incumpridos o rugir tumultuoso da existência, vogavam pela terra da ilusão, mãe da arte de marear pelos céus do desconhecimento. Sem que o soubessem, os corpos começavam a devorar-se por dentro, corroendo-lhes a existência. 

João contou-lhes então a história de um homem que era marinheiro e encontrou Cristo, filho de pescador.

Tinha sido tudo numa praia, praia como todas as praias arenosas, ainda que sem banhistas, praia de gaivotas sonolentas e mar feito só de rebentação espumosa e rochas descarnadas. Naquele dia era Inverno. A Natureza proporcionava-se, fêmea.

Penso que o Cristo, que eles encontraram, tornou-se dos mais antigos naquele lugar e já não existirá a praia sequer por onde vagueava. 

Ficou, porém uma ideia, precisamente a génese deste livro de ideias de quem receou um livro sobre sentimentos. Mesmo que seja a história fictícia de sentimentos reais. 



2



Encontraram-no, sanguinolento ainda o rasto, junto a um muro antigo que a hera ia carcomendo ao abraçá-lo com garras de raízes parasitas, sugando-o as paredes, gulosa daquela vida mineral. Caído, semi-sentado, braços pendentes, mãos expostas. Nelas, absolutamente nada. Vazias.

O medo de uma inumação clandestina havia feito com que o procurassem por todo o lado possível, sem outra razão salvo a do interesse próprio, egoísmo feito solidariedade e grupo, ânsia de não o perderem. Porque havia vivos que desapareciam e histórias de gente emparedada. Ao terem desabado uma parede, anos atrás, na monotonia esforçada da eterna reconstrução, o estalar de uma ossada, primeiro, e depois, íntegro, mumificado pelo gesso e argamassa, o corpo inteiro e a própria roupa, trouxeram à visibilidade do mundo um monge que entrara na fama dos eremitas ou dos que se tivessem lançado no poço que no transepto marcava o ponto de equilíbrio da edificação e do qual se perdeu progressivamente a memória, anulando-se-lhe a presença.

Naquele local, masmorra e cárcere, receavam-se reciprocamente, sabendo que a loucura os faria enterrarem-se vivos. Só nisto se mantinham vigilantes, policiando-se quanto a esta ferocidade que neles era desejo amoroso, intenso, pungentemente humano, procurando à força de raiva, o local secreto do recolhimento, prisão dentro da prisão, ausência de mundo, já todo ele alheio.

Estava vivo ainda quando o acharam. Iniciara naquela madrugada uma incompreensível escrita, tirando-a das entranhas físicas de si, lugar onde ficaram as sensações, idos os sentimentos: a fome, a dor, as dejecções e o vago ardor do mal. Estava reduzida ali, lugar de vísceras e fluidos, fornalha de todas as ardências e da morna meiguice ventral, a circunstância humana, o mais era o etéreo gélido do ideal, território azul do sublime pensamento, cabeça onde lhe surgira, ao amanhecer, a aurora boreal da intuição, os olhos em chamas, extasiado ante o milagre da Criação.

Não sei hoje descrever melhor o seu estado. Talvez nem seja possível. Descobrira-se que havia perdido todas as referências que dão conteúdo à substância e fazem da sua história existência. Talvez tivesse sido longo processo, primeiro ir-se embora a consciência do espaço, trocado por um infinito majestoso, que surgira do próprio confinamento em que se enclausurava, topografia raquítica de minúscula cela para severo recolhimento, onde se erguia, porém, o vasto jardim da fantasia e suas flores; depois, tinha-o abandonado a noção do tempo e com isso toda a História narrativa do que existe e até a capacidade de supor um futuro plausível onde fosse presente.

Um dia, sem que todos os outros o tivessem notado, estava só com as ideias e a capacidade de falar. Foi então que se calou, devolvendo-se aos longos silêncios que eram a sua revolta mansa contra toda a existência.

A sua história documentada, que alguém organizara para um arquivo, resumia-se a isso: na primeira folha amarelecida a data em que ali entrara, apanhado na rua do desespero rotineiro após breve tentativa de lhe diagnosticarem doença que justificasse a diferença. Chegados ao insucesso de o entenderem, uns quaisquer médicos catalogaram-no em momento indiferenciado da ciência, local remanescente na taxonomia das patologias do espírito, terra onde ninguém mais o encontraria, terra de ninguém, aquela em que se acotovelavam os bizarros e os alcoólicos, os extravagantes e os quase psicóticos absurdos do incomum. E os criminosos, nisso incluídos os que a justiça incriminara. E os que fazem por ser aquilo que os leva para ali, por fome e anseio de casa.

Terceiro excluído, inclassificável em qualquer modalidade da burocracia da cura ou do desprezo, poderia a cada instante ser mandado embora. Mas fora ficando. À força de não saberem que fazer de si, esqueceram-no.

Talvez houvesse ali, lugar remoto em interior murado da cidade, uma lei não escrita, guardada por zelosos sacerdotes, em nome da qual o seu destino se traçara sem retorno. A perpetuidade era, naquele preciso local, o tempo restante que a vida lhe concedesse, ser velho benefício de não ser longa a espera. Um dia a vontade ajudou. Não queria sair. Recolhera-se, tendo como única companhia um enigmático gato, tão parte de si que o olhar de ambos se assemelhou. 

Hoje, passados anos, idos muitos dos companheiros, o seu número era o mais baixo de todos naquela camarata. A antiguidade trouxera-lhe direitos que não pedira, isentava-o de deveres que, no entanto, cumpria sem cessar. 

Nunca houve em relação a si motivo de queixa, a sua passagem por ali tinha deixado de ser razão de reparo. À força de ser cumpridor conquistara uma quase invisibilidade.




3

Como se dera a transmutação do corpo em silhueta, a degradação da presença em vulto, a desumanização, em suma, da sua pessoa?

O perecimento da carne, esse ocorreu pela lenta corrupção dos tecidos corpóreos, trazida pela idade; o espírito, esse, ficou, indiferente, como depósito do sobejo. Se existia alma apenas ficou memória, vaga e insubstanciada, lembrança de domingo de infelicidade.

Primeiro, fora a desdentação, a boca tornada bico cerrado, agora pássaro o homem cujo sorriso, a existir, seria caverna escancarada, a mirrar-lhe o semblante e por isso desaparecera, desfigurando-o, transformado em esgar. 

Depois, seria a calcificação das cartilagens, pulverização do ser vivente, a Natureza a recebê-lo petrificando-o, primeiro, para o disseminar, depois, em pó. 

A voz tornara-se cava, longínqua, como um sopro do interior da terra. Os membros, esses, rígidos e dolorosos. A fixidez do corpo antecipava a imobilidade, sinal de que vida se fora. Trôpego, amparava-se em cada trecho do seu arquejante modo de andar.

Sentado agora junto a um muro, concretamente frente a um muro, aquele homem entendeu, enfim, os limites da palavra, reduzindo-se ao silêncio. Nada mais tinha a dizer. Refugiou-se assim na sua interioridade. A princípio aprendera a pensar murmurando, tornando o pensado em palavras. 

Recitava-a como uma ladainha, repetida, monótona, uma oração cujo formulário estivesse já devorado, ficando apenas a reza, mastigada como uma tabuada. Um dia deu conta que começava a esquecer-se de algumas partes e a enovelar outras, dando nós nas frases. Resolveu inventar o seu próprio salmo. Não se sabe quando. Foi o surgir de as coisas se tornarem repetidamente assim, mastigação de ancestral crendice, responsório.

Contraído no esforço de contemplação, surgia-lhe, primordial, o abstracto como alheamento de si, vago informe, desprovido de substância. No mundo exterior, as coisas perdiam contornos, desapareciam em todas fronteiras que as tornavam individualidades. 

Uma extensa mancha de cor, feita de outras manchas que em si mesmas se entrelaçavam e diluíam, eis assim, liquefeito, o território da realidade. João acreditava que era assim um homem estar a cegar.

Vencida a vigilância dos sentidos por esta embriaguez da vista, chegava-lhe então, sob a forma de densa sonolência, o alheamento. A mão que o prendia a tudo o demais, espécie de amarra que lhe dava das coisas a ideia íntima de pertença, ia-se rompendo, como quando o sangue escorre de uma extensa ferida, gorgorejando, e assim, por esta forma tão suave que chega a ser apetecida, a vida se vai escoando, com doçura e dormência, e nasce no ser vivo gratificação, o desejo de morrer e a morte.

Foi nesse dia que a repugnância do corpóreo lhe restitui o amor pela ausência de si.

Nascera em noite trágica de trovoada, em que no céu de chumbo exércitos invisíveis descarregavam setas de luz sobre alvos imaginários, ribombando estrondos como festejo de destruição, estrepitosas gargalhadas e martelos de Deus em uníssono, bombardas sulfurosas de infernos que as entranhas da Terra regurgitavam.

Naquela madrugada de ais, entre gritos sangrados e um ranger raivoso de cadela parida, uma mãe jogava-o nos braços da vida, escoando-se, pela rendição na luta pelo seu ser. A sua Mãe. 

Fruto de sentimenos odientos, ele era a possibilidade de o amor sobreviver, rosa triunfante em terra árida. No instante do cordão umbilical os médicos ceifaram-lhe a vida, com um golpe certeiro. Sem que o percebessem todos, a sua alma escondera-se naquela criança. Esta é a sua história. Foi tudo muito rápido. Poucos sabem o pouquíssimo que de si se conheceu.

Já homem, lançado aos outros, decidira negar-se como se não fizesse parte daquela Nação, fosse estrangeiro ao território, alheio àquele Estado. Emigrara ficando no País, sobejante. De criança nada se sabe.

Começara pela incompatibilidade com a ideia de Governo até chegar ao ponto em que nenhuma governabilidade o convencia. Depois, eram os vizinhos próximos e adiante as pessoas no autocarro, mesmo no momento em que, a esmo, lhe surgiam, caras sem rosto, vultos anónimos quase sem corpo, e os próprios transeuntes, fantasmas vindos da madrugada.

Em certo momento sentia-se o único passageiro possível de paragens infrequentadas. 

Naquela altura, mesmo com chuva e noite, eram quinze minutos calcorreados, o eco dos passos pelo macdame a esboroar-se até ao cruzamento da hora certa. Caminhava sempre por chão imprevisto e caminho empedernido. Chegou a ter uma bicicleta noctívaga, clandestina, a bruxuleante luz apagada para não denotar presença, evitando do caminho o cascalho ruidoso e revelador da sua passagem.

Progressivamente marcaram-se-lhe no rosto sinais de revolta sob a forma de tristeza. Deixara de sorrir e vivia esconso. Receosos, os poucos que o reconheciam deixaram de lhe perguntar porquê. Houve um dia em que ninguém lhe falava e ele tinha razão para os ignorar a todos. Pedalava já sem motivo, tornada a causa em dever.

Amputado como cidadão, estava agora negado como pessoa. Não teve mais biografia. E mesmo esta tem a improbabilidade de poder não ser sequer a sua. Há nos heróis quotidianos o mito ficcional como sobrevivência da honra.




4


Foi aí, nesse instante, momento indeterminado e imperscrutável, que a encontrou e à sua história. Chamava-se Laura.

Havia dias em que se sentava, aninhada, deixando desfilar pela sua mente cenas sobre o que tinha sido vida. Cenas confusas, nada lhe parecia nítido ou claro, imagens desfocadas, amalgamadas na sequência, atropelando-se, imparáveis, a sucederem-se, em aceleração constante, mais depressa, cada vez mais depressa. Cenas indefinidas, as que eram verdade do seu passado em breve se misturavam, indistintas, com as que eram fantasia do que gostaria que tivesse sucedido. 

Sentada na cama, escondida no seu quarto, sem cidade nem gente, sem si, sonhava viagens, vivia a alucinação do viajar.

Foi assim que lhe surgiu o desejo da bicicleta, que em garota tanto desejara, e na qual voava agora, veloz, velocipedicamente feliz de tão contente, infantil e ria, o mundo de todos os outros sempre para trás, pedalando e deixando-se ir, o duro selim sentido ali como impúdica doçura meiga, as pernas a cansarem-se, abandonadas, mesmo quando a corrente um dia se soltara, escorregadia de oleada, pois se ensarilhara no pedal, conspurcando-lhe as mãos de modo tão real que ainda hoje o sentia, persistente e viscoso, como uma nódoa que lhe manchasse a existência, o escorrer lambuzado e sujo.

Dias houve em que a possibilidade da bicicleta se tornara na impossibilidade de voltar a vivê-la como a sentira nesse tempo passado de promessas de vida em que o mundo parecia território para todas as eventualidades. Mas o corpo, informe, ausente, esquecia-se.

Fora ao cruzarem-se na silhueta da noite, pedalando silenciosos em destinos opostos, que se encontraram no território do que seria evitarem-se ante o desejo inesperado e submissos à vontade de ficarem.

Sofrendo essa indeterminação do presente e essa indiferenciação do passado, todo o tempo lhe parecia tempo futuro, todo o espaço Pátria de devaneio.

Imaginou-se assim, a supor a vida como contínua antecipação, a visionar-se como intérprete que representasse a personagem de que era figurante, tímida, hesitante, em constante espanto, espanto contraído por não haver surpresa diante do adivinhável mas que, afinal, se adivinha, mundo em que a biografia é necrologia a precipitar-se no jornal que só o próprio lê, condoído de si, na expectativa do ritual público e cerimonioso do adeus.

Assim eram alguns dias recônditos de hesitante sol, dias de dormência e de sorriso, dias de visitação de doçura e de afago a despontar sensações, dias de atrevimento recolhido, de suspirar escondida.

Mas hoje chovia, chuva pertinaz, convicta, feita do acto de chover muito e muitas vezes e quase sem excepção, o céu povoado de ofensivas nuvens, aziagas nos seus presságios de relâmpagos, em que se liam azares e sortilégios, a ribombar descompassado o coração, e bátegas de malignidade, cruas como pontapés.

Foi aí que Laura o viu, não pelo aproximar que a preveniria, mas no próprio instante pavoroso em que o sentiu, ele e o seu peito esquálido, ele e o seu arfar mau, o hálito e os dentes, pulsar vital e o abocanhá-la, velho pelo cheiro, a mão aprisionada, suar e arrepiar-se, fria, já não era ela mas uma alteridade estranha, estrangeira, que a dominava, vinda do imemorial sem idade, subjugando-a, fazendo-a sucumbir, como se os intestinos se lhe revirassem e tudo quanto são intimidades sujas e o tumulto interior, onde estão as catacumbas do corpo. 

Tremendo sonho, retesava-se num esgar de dores e de rejeição. Talvez fosse assim o surgir do desejo a purgar-se como um abcesso lancetado. 

Na valeta, as bicicletas testemunhavam silenciosas.

Um fio de água gelada escorria-lhe do cabelo, afundando-se pelo rosto, sucessivamente mais fria, o peito a eriçar-se de tão álgido, cortante, intimamente jorrado, liquefazendo-se a ensopá-la, escorrendo incomodidade e vergonha.

Vindo de si, como um choro contido num murmúrio, um clamor aflito, a chamar por socorro, revolta contra o mundo todo e aquilo em que se tornara, um fluxo imperceptível de vida conhecia, enfim, a sua existência, ungindo-a em sagração primaveril.

Sangrava pela primeira vez a imundície lodosa que a fazia mulher, nascia consigo a repelência que se tornaria o modo como não se reconheceria jamais em qualquer galanteio, o cinismo ácido com que receberia todos os adjectivos amáveis da língua simpática dos habitantes das terras da cortesia, os agraciadores indiferentes, os cortejadores amáveis. Repugnava-se de si e do medo lunar do improvável momento.

Daquele dia em diante impedir-se-ia de voar na sua bicicleta para não desobedecer às conveniências. E evitava a noite.

A Natureza sujara-a durante o sono, como a um palhaço a pintura, o rosto ridicularizado, menina a julgar-se feia, a boca sanguinolenta de tão vermelha, inchada de tão grotesca, o corpo a arredondar-se de desejos e suas dores.

Chegada a casa, não havia como ocultar. Contou a verdade do horror, omitindo o gozo. Mas disse um nome. Aquele que conhecia e julgava existir. Percebeu que seria vingada. Hesitou um instante quanto ao que seria a veracidade do que relatara. Não havia, porém, forma de contar os sentimentos que aquele acto defraudara mas que o haviam permitido, o gostar nascido no desejo e que a vontade própria cerceara, tornando-o, por isso, apenas uma violência confrangedora.




5



Sucedera tudo sem saber o que era não ter razão. E agora nem tristeza sentia para enfrentar a compaixão mortiça de todos os outros, que o olhavam, ele em torpor dormente, arremetido ao recanto da indiferença que é o esconderijo sombrio dos já perdidos e dos que, entretanto, desistiram.

A vida que abreviara era já tão desinteressante como a sua e por isso não lhe deu valor. Um pequeno golpe e o escorrer doce do sangue resolvera o resto, até ao silêncio final e um ligeiro tremor na mão em busca de socorro que não veio, o grito silenciado. Espantar-se-ia com a brevidade do acto.

Haveria, depois, nos que o julgaram, a ideia de que era um supremo bem o que ele decepara assim com golpe tosco, mas fora quase sem pensar que o fizera, porque a vida são também repentes nos que a suprimem, sobretudo violentamente.

Só talvez o brevíssimo instante da surpresa do outro, segundos antes de tudo suceder, lhe fizera compreender o estranho da situação, os olhos muito abertos como uma boca que pedisse clemência, certos, porém, ambos, de que chegara a hora e, com ela, o começo de uma desconhecida existência. 

Deus Todo Poderoso escondeu-se, envergonhado de indecisão.

Preso quase de seguida, tentou explicar-se sem sucesso. Faltaram-lhe na Guarda as palavras e ainda não tinha bem as ideias coordenadas. Doía-lhe sobretudo a cabeça e uma ligeira náusea toldava-lhe a vista, ressacado, tinha a esperança da purga no acto de vomitar. Doía-lhe, afinal, todo o corpo. Quando deu acordo de si tinha-se-lhe fechado uma grade atrás das costas e o mundo adormecera. Uma lágrima de água chuvosa escorria pela parede.

Mais tarde perceberia que tinha sido aquele o preciso momento para se explicar: dizer que tinha morto quem o mataria, matara por sobrevivência, matara para que aquele que teria de remanescer fosse ele. Mas o que vem fora do tempo parece inventado. E isso, ele não sabia. 

No entanto, se não tivesse chovido naquele dia, se os pés não se lhe tivessem inchado, embotados, peganhentos dentro da meia rota, esmigalhados pelas botas emprestadas, talvez a vida tivesse sido possível e com ela o perpetuar do rancor do outro não saciado. Mas a um homem a quem dói é impossível não magoar. 

A dor vinha longínqua, doméstica, habitual porque diária, feita de uma fidelidade de presenças, amorfas, mas ostensivas. Uma dor apenas contra si mesmo.

Vida de penúria, mútua, de silêncio e fome e desinteresse, vida onde se alojara a cobra venenosa da raiva recíproca e ódio comum, sumiram-se-lhe nela anos, e noites sobretudo, porque contava por luas a chegada dos dias; sonâmbulo na aflição do sonho.

Pesara-lhe aquele sufoco e, assim, do sofrimento repartido ficava apenas ele para alombar com a culpa. Sozinho, agora preso. Nisso fora justo com a miséria, diminuindo o número dos famintos. Há para muitos na cadeia uma malga de sopa que vale uma moeda da liberdade perdida. O pelotão bisonho do tanto faz.

Estavam ambos já sós naquele tempo condenados entre si. Os filhos tinham-lhes partido, emigrados uns, logo que a idade lhes deu coragem para calcorrear a fuga, moídos outros pelas maleitas e pela pancada, que a violência ali era doença também e contagiosa, sem cura possível nem medicina, forma de os fazer meter pés ao caminho e ala que se faz tarde daqui para fora, que amar é desejar alheamento e adeus se fores para melhor, some-te daqui que já basta isto para nós a termos de ficar, e ficavam.

Mas que interessa isto e como consigo reconstitui-lo com grandeza dentro da pequenez do instante?

O acto pelo qual matara e porque vinha morrendo não se chamava inveja de haver gente feliz, mas nascera naquele sorriso trocista, feito de boca com poucos dentes, escárnio de pobre, com que ela, prenha ou a emprenhar, se ria da infelicidade e escarnecia do infortúnio, parindo misérias para o mundo e deixando-se montar de seguida, sabendo que a roda da frutificação não parava, roubando cada vez mais à gamela comum com mais uma boca esganada de fome voraz a amortecer; até lhe secar o ventre como terra gretada que o outono torna mais maninha.

Ladra de sentimentos, abocanhava em catraia sensações a tudo quanto era macho em redor, cortejo canino em cio e ela, arredondando-se, a provocá-los, nalgas tão exuberantes que era pecado ver, imaginando-as povoadas e atestadas de luxúria líquida, ladra mil vezes, gatuna das fidelidades de muitos e das conveniências de todas, vendera-se-lhe na altura em que as hipotecas lhe levaram ao pai a fazenda e a elas, filhas, a generosidade do amor sem ser venal, que vinha de coito gratuito e doméstico, e que ali, entre pardieiros, se vendia barato, amor cuspido e mal lavado, pagas depois se não tiveres.

Pela noite adentro, golfadas sucessivas inundaram-na então, e ela submissa e conjugal, confiando o ventre ao acaso das luas, gemendo baixinho um sussurro de lágrimas que passavam por gozo e não tinha outro, e um outro Deus mau devolvia-lhe esse sémen em filhos e não havia esperança de que os esganassem na hora de os mandar fora, revoltada, de dentro daquela pança parideira, sangrada e exaurida, as mãos cravadas no único colchão de onde todos provinham, manjedoura comum e enxerga onde lhe ficaram uns quantos de febre a arder.

Há sempre um dia em que chove na vida de um homem.

Naquele dia talvez fosse o frio e o roxo das mãos e a faca no bolso mas foi terem-se encontrado, horas tremendas, o outro tão bêbado de desespero como ele de aguardente rasca e cambo. Estava velho. Compreenderam-se no relâmpago do olhar. A hora chegara, longe da justiça possível dos homens, sumária, higiénica naqueles corpos surrados, para que as almas entrassem, endomingadas, no Céu possível que lhes coubesse.

Um trazia na alma a vingança feita justiça ante o que uma filha incerta lhe contara ter sucedido nocturnamente naquela estrada despovoada, João a querer cevar no outro a ânsia de não morrer sem ter morto.

Foi talvez o silêncio, a mudez. Ambos sabiam que, pai, tinha sido um deles o primeiro a escancarar-lhe aquelas portas pelas quais meia aldeia despejara depois, como em vazadouro, as lubricidades insatisfeitas e as solidões assim esvaziadas. 

Havia que vingá-la, pagando-se o preço do acto com a única moeda possível, lavando a honra com o público sangue da honra. Isso, todos compreenderiam, e dava novação à velha dívida caseira.

O resto adivinha-se. Ninguém viu. Ninguém sabe como ali se morreu. O silêncio deu grandeza ao que foi e exasperou, raivosos, os juízes que queriam ao menos o consolo de uma confissão. Condenaram-no porque não poderia ter sido outro. 

Ficou assim, o mundo quieto e o Céu apaziguado. Tocava ao terço no adro adiante quando a luz glacial da contrição lhe sufocou o semblante, arroxeando-lhe as feições dessa solidão a que se condenara.

Ninguém notou no incomum de si a loucura. Só mais tarde, tempo já sem tempo, o extravagante do seu ser daria em caso sério. E com isso passara a uma outra prisão, tão cerceadora como qualquer outra porque estava aprisionado pela alucinação e seus desvarios. Internaram-no dum estabelecimento para outros como ele. Tornara-se em alienado e assim o alienaram.

Animal sedento de vida, alimentava-se da vida alheia. Tinha atingido, primeiro com o ódio homicida, depois com o rancor despeitado, a perfeição da malignidade. Mesmo que a ordem das coisas fosse a inversa, caíra do Paraíso da inocência, desamparadamente.

Morrera interiormente quem matara, apesar de na aparência sobreviver, porque finara-se apenas por dentro, no interior silencioso da alma, que não se vê.

Escorregadia em chão molhado, ensopando de remorsos quem matou, aquela morte estendia-se a ambos. Dos dois, para o mundo, um era o assassino. 

Raramente quem mata tem um pensamento sobre a morte. Talvez depois, prolongadamente. Mas antes? Antes não, mesmo quando premeditam. O mais escabroso homicida naquilo em que se afunda é em tortuosos pensamentos sobre a vida que vai suprimir, sobre o facto pelo qual a faz desaparecer. Mas a morte é coisa diferente, vem a seguir. É o vazio, estando ainda o corpo presente no local da sua morte e a ausência definitiva, retirado enfim o corpo e mesmo quando já não há vestígio sequer do local.

A morte não fora pensada nem o vazio que a memória só preserva provisoriamente, cada vez mais ténue, no princípio uma saudade vaga, a daqueles cujos sentimentos foram o merecimento daquela vida ou a sua ilusão, depois, só a pálida reminiscência se a conversa o proporciona.

E agora, no mundo oficial das categorias redutoras e das mentalidades reduzidas, tudo aquilo parecia impossível de ser explicado, como dor vaga que fugisse no acto da palpação, ridícula, a humilhar por ter podido existir sem demonstração possível; porque havia todas as matizes dos acontecimentos e seus interstícios, e a probabilidade de a ocorrência não coincidir com o sucedido e isso não se poderia explicar nem no abstracto, porque há o relato e a versão, a tornar cada coisa apenas o modo como é contada. E tudo a tornar-se no contá-lo. 

Ali, porém, nenhuma história era para contar, a mentira permitia fingir que se contava. Armazenavam-se corpos já sem alma, o arrependimento impossível, apenas o esgotamento pela exaustão.

Fazia agora ali, lugar do seu confinamento, tremendo calor na suada noite, fornalha silenciosa carregada de expectativas mudas e de presenças que não se faziam sentir como recriminação mútua, corpos inertes e indiferentes sem corpo e a hora doentia como na prisão quando o turno da guarda ainda não trocara, ou no hospital a meio de uma vela sem história nem incidentes mas só estertor e agonia azul, hora de respiração contida, em que os olhos tentam perscrutar por entre as silhuetas no escuro, na rígida monotonia adivinhando um qualquer movimento e com ele uma expressão de vida e talvez assim a própria ressurreição.

Faltava-lhe já o querer, assim como faltara no princípio o desejo. Porque esse aquém da decisão, nome que é o da vontade, contenta-se com a simples aceitação do que sucede. A própria resignação tem o seu quê extremo de voluntário, ao ser um conformismo querido, como a clausura de um eremita ou a indiferença de um apoucado ante a chacota pública. 

Mas o desejo, naquela aparência de fantasia e de ilusão pretendida, futuro cortejado que parece ser, está tão mais além no sentir humano, porque é o seu corpo em movimento alado, voando sobre todos os céus do depois, mesmo sobre as terras do nunca.

Amanhecia, entretanto, e com isso aproximava-se a hora. No escorregar do tempo a dimensão do intervalo deixou de ter importância. 

Talvez tenha havido um tempo em que contava sucessivamente os números, deixando entre cada um deles o espaço que a memória guardava como sendo o tempo de um segundo. Precisa ou imprecisamente um segundo. Ao chegar ao número sessenta dizia para si mesmo silenciosamente «um minuto». Começou depois a ter hesitações, quer quanto ao rigor do intervalo quer quanto à constância do tempo que concedia a cada intervalo. Parecia-lhe, em suma, que as dimensões entre cada uma das pausas do seu contar não eram iguais. Para iludir a imprecisão e compensar a falta de rigor contava até sessenta e cinco. Agora nem isso, porque o tempo lhe fizera esquecer a duração do tempo. A vida tornou-se então indistintamente contínua, o tempo uma contingência suportável, a contagem dos dias algo absolutamente alheio por se ter tornado impossivelmente seu.

Foi assim, ao subir as escadas que o levariam à pequena sala onde o condenariam e do mesmo modo quando, descendo-as, se entregou, enfim à sua condenação. E ainda quando ao transferiram para aquilo que julgava ser um simples hospital.

E, no entanto, poderia ter havido tanta razão que, como facto, tivesse causado aquilo e, como circunstância, pudesse explicar aquela sua acção, justificando-a ou ditando-lhe o imperdoável.

Nenhuma vida explica, porém, uma ocasião, porque ao todo é indiferente a pequenez dos instantes e suas minudências.

Tentara que a medicina humana o entendesse e tentara que o cura de almas o absolvesse; daquela, esperava o favor de uma química que se apoderasse do seu corpo e suas pulsões, deste, a unção que o livrasse da possessão do mal. Em qualquer dos casos, ainda que com pouca convicção, entregara-se, não propriamente por uma desistência do ser e seus haveres, mas em luta consigo e com todos os outros, o que equivalia, na guerra total que declarara, em luta contra toda a existência. 

Chegara ao momento em que o seu existir era forma de exclusão de todos os demais, espécie de salvação por anulação. Não se aniquilara apenas por excluir tudo, o extermínio do que sobrevivia era a única forma de evitar o pecado supremo de atentar contra si. 

Nascera-lhe, sem que disso desse conta, a grave doença da indiferença, primeiro o sintoma do alheamento, depois a sequela da alienação; no final, tinha-se tornado outro em relação a si próprio.

Naquele dia olhou-se ao espelho e não se reconheceu nem naquela imagem reflectida conheceu quem quer que fosse. 

Terá sido assim que Deus encarou a criatura, alheio ao próprio milagre de ter sido dela O criador.

Talvez a incapacidade de se entender e, por isso, de se explicar aos outros tivesse sido a razão originária.

O silêncio nasce por vezes do pudor, quando em volta tudo é já inútil e o seu mundo não era amigável, apesar de afectuoso, que é uma forma de as pessoas serem polidamente adversas sem terem de se expor sequer ao incómodo de uma opinião ou repararem ao menos no que está.

Naquele dia talvez o mar estivesse excessivamente azul ou a luminosidade desproporcionadamente refractada. O cérebro parecia explodir-lhe no crânio, como se ali não houvesse espaço suficiente onde coubesse.

A princípio foi só uma dor. Acordara com o seu prenúncio, progressivamente nauseado, volante a rodopiar-lhe na cabeça, força centrífuga a crescer e o gesto instintivo de segurar, com uma das mãos o pescoço, a outra perdida sem nexo e de novo uma guinada a cada volta completa, e um esticão, como se carcaça de embarcação sob o fragor de um chapadão de água, a torrente a sugá-lo para ponto nulo e profundo, a afogá-lo e afogava-se, o coração a rebentar e sobretudo a sufocação e a dor, repugnante dor, viscosa como sangue e talvez sangrasse sem que disso se apercebesse, nocturno o corrimento e dormiria, mas sentia, afinal, perceptivelmente e repetiu para si a palavra «perceptivelmente» e era uma palavra difícil de se dizer ou estava a tornar-se difícil dizê-la, pelo que não poderia estar assim tão mal nem seria tão grave o seu estado, porque, de outro modo, não diria aquela palavra, mas que palavra, porque agora já nem lembrava, salvo que doía muito e mais a dor de não conseguir dizer, só porque não se lembrava e era difícil, e se fosse possível lembrar-se, mas a sua casa era tao longe que talvez já não voltasse a ter casa nem o mar e o seu minimamente azul.



6

A brevidade do fim humano é apenas circunstância. No caso, o cerimonial de um enterro sem ninguém. 

Ela poderia ter decidido tomar em mãos o modo de entregar-se, viciando-se na luxúria da primeira vez, como se tudo fosse sempre cenário público, aplauso e figuração. 

Ido aquele que assumira vingá-la, fizera-se à vida. A conspurcação da inocência levou como paga, esfaqueado naquela rixa, retalhado o corpo de onde lhe proviera a pecaminosa inundície.

Perceberia cedo o jogo da representação quando, ao cruzar-se com o espelho no elevador, se descobriu outra. Não seria a fisionomia, porque evitou-a, para se não saber demasiado familiar consigo, nem o contorno do corpo, a projectar, carnal, saliências em que evitava pensar para que pudesse ficcionar a casual atracção, porém estudada.

Percebia o subtil jogo de ser outra quando se olhasse pela primeira vez e se desejasse. Nesse dia surgiria o anseio que fossem outros a repararem nela. Como tinha sucedido tanta vez. E como sucedia afinal agora.

Tinham, porém, passados muitos anos, e esgotara-se em todos os rituais em que o corpo se extingue e a alma se apouca. Lentamente perdera certezas e começara a desrespeitar-se.

Tudo surgira com o lamentar escolhas, desde os lugares para onde não deveria ter ido, às pessoas que não deveria ter frequentado. Algumas haviam-se instalado, acampadas, na sua vida, fazendo dela um dormir ao relento e acordar sem vontade de que houvesse dia.

Depois foi o silêncio conformado, rendida a todas as obrigações quotidianas e às sujeições mensais. Um dia desistira de ser fiel a quem não devia. Odiava-se e ao que sobejava a esse ódio. O rancor azedara-lhe o ser, sabor ácido na pele, olhos a encovarem-se, encerrando-se ao acto de olhar.

Agora espantava-se consigo própria como se tivesse cruzado com quem subisse a mesma rua que descia e ali encontrasse o ser que desconhecia mas que era ainda a sua pessoa, incontida agora.

A voluptuosidade do seu ser abria-a, decotando-a ao impudor. Hoje estava bêbeda, perdida no inconveniente e no incontrolável.

Tinha-lhe regressado a ingovernável vontade de rir. 

Rir do mundo na sua generalidade, de ser redonda a Terra e nos pólos achatada, e das estrelas que, sendo imóveis, pareciam planetas. Rir dos outros e cada um dos que eram a materialização do outro, como a senhora magra, sumida, de vestidinho malva e mangas tufadas, os bracinhos de polvo escondidos, a mão ossuda, rapace, anquilosada, no banco dos palermas do autocarro apinhado. 

Rir, rir sempre, rir sem dentes, sem boca e sem língua, rir sorrindo, rir num esgar.

Tinha reaprendido a arte do riso, a técnica da hilaridade, o modo de escancarar gargalhada. Rir boquiaberto, rir sussurradamente. Rir silencioso, por detrás do biombo da cara inexpressiva.

Naquela manhã saíra mais cedo para a rua, ultrapassando a miséria em que antes tropeçara, a do lixo por recolher, evitando, numa gincana sabida, os mendigos e os mal enjorcados, a pedirem remendo ou ferro de engomar.

Diante de si a cidade, a mesma cidade em que nascera, para a qual se dirigia todas as manhãs, regularmente, a cidade sorumbática e indisposta, a dos ensonados, ruminantes de noites mal dormidas ou pior passadas, a exalar o mofo de alcovas enfadonhas e o odor sintético de duches despertadores.

Conseguira encontrar na sua cara uns outros olhos, no seu rosto um esboço aberto sem rugas e, sobretudo, uma nova forma de estar.

Foi por isso, nesse outro mundo, que o mundo lhe surgiu na forma de um aflitivo chiar, estrondo sentido como se em outro tempo, instantaneamente, a rachar-lhe a cabeça. 

Horas depois, removidos os salvados, levado o corpo, enxaguado o sangue no pavimento, a cidade ria, rendida à ingovernável vontade de rir. Caída, na distância de um estreito espaço, desconjuntada, uma velha bicicleta.

Atónita, tremiam-lhe as pernas descontroladamente como se tivesse sido o seu corpo a escapar ileso tendo tentado que fosse esta a sua vez. Mal reparou no miar aflitivo de um gato, vindo das imediações, em sobressalto de pressentimento.

Levantada do chão não mais seria a mesma.

Quando saiu do recobro seria outra se houvesse alguém que pudesse compará-la com o que tinha sido, mas todos os lugares eram-lhe agora estranhos e as pessoas estrangeiras. A própria língua com que ouvia falar era irreconhecível, como se insólito dialecto de uma linguagem em que tivesse sido instruída por memorização, longínqua e desconhecida.

Foi então que entendeu, enfim, que o seu mundo era inteiramente mudo, as paredes a fazerem um cercado unicamente intervalado por um pesado portão, e um guarda que a vigiava. Não mais deixaria de ser vigiada.

Era impossível sair daquele lugar ao qual não sabia como chegara e que, afinal, era o mundo dos homens que se julgam livres.

Acordava à pequena luz reflectida, pálida essência de um qualquer real que o contínuo esforço de olhar lhe restituía como penumbra.

Uma dormência nas mãos iniciava, lenta, o seu percurso, asfixiando-a. 

Talvez o dia fosse essa reticência do ser a renovar-se. Talvez pudesse ter evitado tudo se não tivesse comparecido à hora marcada pelo azar do que no tempo se conjuga.

13.5.09

Entreaberta a porta

Hoje vim aqui falar do meu Hugo. Estuda no Arco, pintura e desenho. Um destes dias gabei este quadro. Pressenti em volta um pesado silêncio. Feriu-se-me o coração de pai. Tento ser objectivo e dizer que tem valor. Com convicção. Se apreciar com isenção não é possível a quem é pai, que eu não o seja, mas triunfe a Arte se tiver que triunfar.
Sinto uma interior alegria em hora triste ao ver estes traços. Vou visitá-lo aqui, ao atelier onde esgravata horas a fio. Esta noite gostava de lhe falar das agruras da vida, mas como entristecer um artista, que é luz, alegria, vida? Boa noite, Hugo Bernardo, a vida é bela, as noites lindas, estonteantes...

3.5.09

A longínqua dor

Evanescente, longínqua, por vezes ausente, vivendo só e do resto sozinha, não sei o que pensará deste dia. Resumiu-se em um só filho, do mais esquecida, a tudo indiferente. Hoje é o Dia da Mãe, um instante para se viverem remorsos e tudo aquilo para que um homem nasce.

26.4.09

De passagem

Da última vez que lá tinha estado, de passagem, havia apenas uma pensão e um modesto restaurante. Agora há uma pousada com bastantes estrelas, de que vi o exterior. O lugar é magnífico porque insólito, um vago cheiro sulfuroso perfuma o ar. A cor incendeia os olhos, o vermelho ocre, o cobreado, mais alguns outros anéis do arco-íris, ferruginosos, pétreos, na paleta dos azuis e dos verdes, o negro vulcânico, a cinza, os fundidos no cadinho alquímico da Mãe Natureza. Encontrei agora esta fotografia, que retrata com perfeição a sua solitária grandeza.
É a Mina de São Domingos. Aqui ao lado de mim, na Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian, há uma colecção de slides. Só pode ver-se através da rede local. Quantos outros ali estiveram, a guardar em fotografias, tão pungentes como esta ou esta, ou tantas mais, a alma envenenada de uma mina abandonada.
Em 1997 Filipe Verde produziu um documentário a que chamou Biografia de uma Mina. Em tempos estudei a La Sabina, a empresa que explorava o minério, por causa de um livro que vou agora começar a escrever. Agora estive ali. De passagem, sempre se passagem, o lugar vive ao abandono dos que passam e só de quando em vez voltam.

13.4.09

O desejo do outro

A foto é fantástica. O que atrai a quem devia ser o foco da atracção. Vê-se e conclui-se que há sempre o desejo ante o que não somos, o apetite pelo que não temos, a fantasia mesmo face ao que não gostaríamos de ser. 

12.4.09

A velhice das monarquias

Em Outubro de 1957, a Rainha Isabel II visitou os Estados Unidos da América. Foi recebida pelo Presidente Dwight Eisenhower. A foto ilustra um banquete oferecido em sua honra na Casa Branca. Desde o início do seu reinado em 1952 existiram 11 Presidentes na América. As monarquias envelhecem, as democracias preservam-nas. Eis a foto do último instante, aqui.