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Lembro que o carro ficava debaixo de uma árvore, para que o encontrássemos fresco, ao regressar. O mais, são só memórias de sofrimento: os sapatos de verniz mordiam-me os pés, o colarinho apertava-me o pescoço; estava-se de pé parte do tempo, de joelhos horas a fio. As ladaínhas, incompreensáveis, diziam-se, rangendo-as, em latim. Ficou-me por isso, como um tormento, apenas a ideia de um Cristo eternamente pregado na cruz, o Pai indiferente, a Virgem Mãe rojando-se a seus pés. Ao domingo os velhos ficavam contentes e eu comia amêndoas. Ao arrumar os sapatos, vendo-lhe no verniz estalado o sulco quebrado do seu uso, sentia que a vida era imperfeição. Quanto ao Cristo, acho que continuava, esquecido, pregado na cruz,
secula seculorum.