27.12.08

Um pouco d'auga, pl'as alminhas!

Creio que foi há dois anos vieram pedir aqui a casa água para dar de beber a uma destas árvores ou talvez às duas que «coitadinhas tinham sede». O ar inquieto não se disfarçava no rosto de irradiante bondade. Penso que teremos dado o contributo de uns baldes, atestados à torneira, para o florestamento da cidade. Por isso, as pobrezinhas conseguiram resistir à canícula e à secura na goela e ali estão agora, refasteladas de tão molhadas, os ramos de quando em vezes a adejar a alegria de estar a chover. Ao lado passam chapinhantes automóveis e uma transeuente encharcada. «Então e a sombrinha vizinha?», perguntaria eu de bom grado. Mas já fugiu, Praça de Espanha adiante, ala que se faz tarde, nem sombrinha nem sobrinha que o dia hoje está de água vai.

26.12.08

Um vestígio de bondade

Há dias em que as tardes parecem noites e em que o amanhecer não devia ter acontecido. Há dias em que o sol longínquo inicia o seu apogeu por sobre a terra gélida, os ventos de norte, as almas glaciais. Nesses dias os navegadores rasgam das velas abandonadas tiras que serão farrapos convencionais, feios de tão vulgares, atados simples, restos feitos do que já foi uma forma de voar. Encostadas às amuradas, salgadas de tanto mar, as embarcações chiam as suas velhas carcaças, retesando o cordame, provocando a amarração.
Chegámos aqui ontem, contentes de viagem, felizes por viajar. Um momento depois começava a nevar. No cais um vestígio de bondade aninhava-se na forma de uma bebedeira noctívaga, o passo hesitante, já sem saber para onde ir.

25.12.08

O vau de mim

Majestosa, emergindo, túrgida, entre a folhagem, ei-la a força procriadora da Natureza. Espinhosa, difícil, inacessível, uma beleza solitária, supreendente na manhã. Um pouco antes um jardineiro, de passo estugado, desejou-me um bom dia. Surgiu-me da mesma vida de que esta flor é vida. Uma nesga de sol guardou-se, aninhado também no vau de mim, aquecendo o sangue num dia de frio.

22.12.08

Uma vida à margem

Imagine-se que ao chegar de uma longa viagem a memória retenha em sonho que se viajou até aqui. Imagine-se ao alcance dos pés o gorgorejar da água tranquila a espreguiçar-se na margem, à distância da vista o fundo celeste recortado em silhueta sob a névoa, o musgo a atapetar um chão onde apetece dormir, imagine-se um local onde se deseja ficar.
Imagine-se que ao chegar se sonhou não ter regressado, como na fotografia de uma adolescência de onde jamais se deveria ter partido, muito menos em viagem.

6.12.08

A vertigem

Olhem-se os olhos, atentamente. Tente-se captar a alma, o sentir, o íntimo pensamento. É exactamente esta a sensação. Na vida também, como na imagem. A vertigem de não conseguir.