21.2.09

O rascunho

O filme que vemos nasce na moviola como o livro que lemos nasce na revisão. Escrever é simples e no rascunho está o génio do escritor. Só que o leitor é medíocre. Não consegue imaginar o sentido ante o lido. Tal como na vida a sequenciação é tão necessária na arte. O grande plano de um chocolate quente, por exemplo, num sábado de manhã. Com ele a narrativa está ganha. Reparei hoje que o canteiro das roseiras estava tratado. Os troncos saídos do Inverno esperam, prometedores, a chegada do sol. Em breve estará aí a magnífica rosa.
P. S. A foto é de Pasolini na mesa de montagem de um dos seus filmes, na moviola.

17.2.09

Aquele homem


Ontem ouvi, em viagem, uma magnífica entrevista feita na Antena 2, pelo Luís Caetano a um escritor argentino cujo nome não consegui reter. Naquele momento a maçadora estrada sumiu.

Num momento da conversa relatava quando encontrou o corpo do pai, médico, assassinado pelos para-militares, caído numa poça de sangue. Revolvendo-lhe os bolsos, a alma despedaçada, encontrou-lhe então um poema do Jorge Luís Borges Ya somos el olvido que seremos, copiado num manuscrito de difícil caligrafia.

Esta manhã fui procurá-lo: «Ya somos el olvido que seremos. El polvo elemental que nos ignora y que fue el rojo Adán y que es ahoratodos los hombres y los que seremos».

Num mundo de abutres este, o verso é um hino à mais intrínseca humanidade e modesta consideração pelo outro: «No soy el insensato que se aferra al mágico sonido de su nombre; pienso con esperanza en aquel hombre que no sabrá quien fui sobre la tierra».

11.2.09

Delete

Passou a ser a minha caneta, noctívaga, madrugadora, a minha janela para o mundo, a minha caixa de correio, o lugar secreto dos meus desabafos, o meu arquivo, a minha sala privada de cinema, onde passo os olhos pelos jornais que não leio. Estão lá os livros que deveria acabar, o trabalho forense que me persegue com os seus prazos, os momentos mais íntimos, porque até um advogado tem alma. A mão é a minha. É através dela que se escoam os sentimentos, escorrendo para o teclado, em batidas incertas, por vezes com a aparência de palavras seguras e determinadas. Há no teclado uma tecla chamada «delete». Tem sido na vida a minha sombria tentação.

7.2.09

A ordem inversa

Devo à minha amiga T o ter encontrado a fotografia, o tê-la digitalizado, recortada, o tê-la enviado. São estes os laços bons que a blogoesfera cria. Lembrei-me da Agustina esta manhã, não no seu livro em azul que estou a ler e que deixei a meio, a faltar ainda a primeira parte, porque sigo pelos seus capítulos do fim para o princípio, os do fim talvez mais apetitosos; sim por ter comprado, há uns anos A Contemplação Carinhosa da Angústia, numa Feira do Livro nas Caldas da Rainha, eu de férias então em São Martinho do Porto. Tudo isso está hoje muito distante. Fui buscá-lo agora à estante, deixando lá os seus companheiros, fruto de uma obra que não consegui reunir na totalidade. Uma sensação vergonhosa de não lembrar nada, eis o que sinto. De que valeu a pena ter lido, se a recordação que fica é apenas de terem sido tristes os dias em que me alegrei a ler o que afinal já esqueci? Talvez seja essa a renovada esperança, a superstição do recomeço, a tentativa de viver a vida do fim para o princípio, em rejuvenescimento perpétuo.