31.12.05

Uma luz pardacenta

Um vento cortante saía pelas frinchas da porta e por um vidro meio quebrado de uma das poucas janelas. Em frente a mim uma mulher de idade infinitamente antiga dormitava, anichando ao peito um saco de pano do qual emergia, altiva, a cabeça de um galo. Imperial, os olhos amarelos de desdém, fitava-me, como num desafio. Em frente a nós, comboios jiboiantes, de mercadorias, em horário nocturno, cruzavam-se sem parar. Tudo parecia como nos confins do mundo. Entráramos para ali pelas quatro e meia da tarde e já era noite. O livro que tentara ler, há muito o esquecera, cego por uma luz pardacenta de suja, que mal nos alumiava. Faltava apenas chegar, atrasada sem se saber quanto, a automotora que nos tiraria para destinos mais gelados, mais incógnitos do que até aqui.

30.12.05

O céu possível

A loja de doces era do outro lado da rua. Bolinhos pequenos, secos, revestidos a amêndoas, recheados de mel. Acompanhavam-se com chá de menta. Um odor refinado, fumegante, de tom azul, filtrado por uma luz difusa, sugere um interior. Misturam-se odores, cores e sabores. A loja de doces é o céu possível, num canto da terra.

29.12.05

Um céu diferente

Há no mundo da infinita sede e da absoluta desolação, o tempo ido de uma causa, de uma ideia, de um sonho. Às vezes é apenas uma folha de um livro tirado de um armário envidraçado, folheado no conforto do bar de um hotel, longínquo no espaço, perdido no tempo, fazendo tempo para o jantar. Quando, em 1926, escreveu «Os sete pilares da sabedoria» T. E. Lawrence disse que até então tinham vivido todos de qualquer modo sob um céu indiferente; um dia o sol fermentou-os. É isso que que eu vim dizer aqui, agora que é noite e um céu pujante de estrelas se abate sobre nós.

26.12.05

Vida de jogador


Entra-se por um portão normalmente aberto e de um dos lados da breve alameda, segue um renque de casinhas, todas contíguas, como se bungalows fossem. Nesse lugar antigo a História sedimentara-se, envelhecendo a euforia do futuro, dando consistência lógica a todo o passado. Eu estava ali de férias, em busca de nada, a caminho para sítio algum. Chegara por acaso, por um instinto do momento. O local chama-se Blenheim, fica não muito longe de Oxford. Ao fundo da rua desse hotel, poque é de um pequeno hotel que eu falo, virando-se à esquerda, é o monumental palácio do Duque de Marlborough, onde nasceu Winston Churchill. Lembro-me dos fins de tarde, quando, por ser Verão, a noite custava a chegar. Foi aí e então que eu li «O Jogador» do Stefan Zweig, e a história do preso que joga xadrez contra si próprio e sucumbe, enlouquecido, a essa impossibilidade lógica. Poderia ficar-se ali o resto da vida. As razões que o impediram, naquilo que orgulham, entristecem. também.

A curta vida da glória imortal

O primeiro prémio Nobel da Literatura foi atribuído em 1901 a um tal Sully Prudhomme, de seu nome verdadeiro René Armand François Prudhomme, poeta parnasiano e que na Academia Francesa ocupava a cadeira número vinte e quatro. À data Leo Tolstoy estava ainda vivo. Eis o que lembra Louis Menand num artigo sobre os prémios literários, seu sentido e limites. Trata-se da economia global da literatura, do modo mágico de converter um mau produto numa excelente venda. Vem no «The New Yorker», foi lá colocado hoje, dia a seguir ao dia de Natal. Quanto ao Prudhomme é aquele senhor em cima, com barbas e ar austero. Foi operário e amanuense de notário. A pertença à Academia dá-lhe direito a ser considerado um «imortal», embora já poucos se lembrem disso.

O ser e o nada

«La vraie philosophie se moque de la philosophie». A frase foi dita por René Descartes e vem citada num artigo sobre a tradução americana de um livro que tem todo o ar de ser simultaneamente lamentável e apetecível e que trata do grave problema de saber como é que um homem de meia figura, feio, quase cego de um olho, de mau feitio e que ainda por cima não lavaria os dentes conseguia seduzir sexualmente toda uma corte de raparigas jovens, belas e por vezes inteligentes. A obra chamava-se no original «Tête-à-Tête: Simone de Beauvoir and Jean-Paul Sartre». A editora é a Harper Collins. O autor da recensão chama-se Leland de la Durantaye, o qual é professor assistente na Universidade de Havard sobre Literatura inglesa e americana. Vem tudo no The Village Voice. Pelos vistos, como lembra o articulista, nas maquinações vis e predatórias, Simone de Beauvoir teria a sua parte. A inteligência, tal como o pau de cabinda, é, pelos vistos, um afrodisíaco, a filosofia um estimulante.

25.12.05

O velho carrascão


A loja vendia de tudo e tudo prometia. Tudo, diga-se, no campo do magnético. Era a pulseira magnética que, por um dólar, o livra miraculosamente do stress, o cobertor magnético que, mais dispendioso, lhe tira, logo na primeira noite, as dores de costas e outras do esqueleto. Mas, de toda aquela parafrenálida sugestiva e sobretudo prometedora, o ponto máximo era o «Perfect Somelier», uma coisa simples, magnética também, como tudo o que por ali se amontoava. A fórmula é simples, o resultado garantido: mete-se dentro da maquineta uma garrafa de vinho corrente, daquelas da lojeca da esquina e em menos de uma hora o líquido envelhece anos e anos. «Sirva no seu jantar uma reserva especial, daquela garrafeira com que sonhou», era a ideia. A razão científica é que o magnetismo elimina os taninos. Se não for verdade, podia ser. Os incréus que leiam.

3.12.05

O mar Aral


Como num pesadelo, o mar sumira-se e a erva crescera no seu fundo. Sal e ferrugem corroem hoje a paisagem. Uma sede de vida surge-nos, erráticos viajantes, súbita e necessária, secando-nos as entranhas. A ideia de uma terra finita, desolada, precária ofusca a paisagem, anoitece-nos o sentir. Um infinito mundo por viver, uma vida inteira desfeita em inutilidades, cobre-me a alma de pó.