29.5.06

QTA, anule a mensagem anterior

E de súbito, por entre o zumbido intermitente mil martelos ecoaram na minha cabeça. Eram quase quatro horas da manhã, a hora em que estar sozinho mais dói. Longe, quase imperceptível, um som evanescente e no entanto claro, familiar. Súbito desperto da hipnose nocturna do éter, três letras, três magníficas letras, pelas quais eu parecia ter esperado toda uma eternidade: QSL, QSL, o sinal para acusar a recepção de uma mensagem. Suspenso por um instante, sabendo-a ali, esperei até ao desespero da alvorada. Raiava o sol, o sinal perdera-se, uma tempestade magnética varria-me o espectro. Era impossível esperar mais. Passaram anos até saber quem era e como tinha morrido naquele instante.

27.5.06

O homem em azul

Sábado de manhã. O sol saíra já, furioso e mau, crestando tudo sob si, enlouquecendo os humanos, convocando raivosas moscas, animado por um coro matraqueante de ralos. Eu esperava num banco de pau de um miserável apeadeiro. Comigo uma mala, dentro dela, tudo o que me restava. Há na vida aqueles momentos em que um homem vive o momento único de ter de escolher o quê e sabe então, como se pela primeira vez, aquilo que é e o que quer. No meu caso, nómada irrequieto, tudo se resumia a uma mala a meu lado. Foi então que ele surgiu. Acordara, convicto, pela madrugada, como sempre e como de habitual, ainda à luz incerta daquelas horas primeiras, vestira, lento, a fardeta envelhecida de uma sarja a esboroar-se. Na mesa, na única mesa do único quarto da única casa que conhecia, a bandeira da autoridade ferroviária, o sinal de vida ao qual os maquinistas confiavam as suas vidas. Empunhou-a alquebrado. Ronceiro, apinhado de gente, aproximou-se pastoso o comboio que me tiraria dali. Um sentimento de dor esganou-me o coração como se, ao partir, cometesse o crime de não o levar.

26.5.06

A ave do paraíso


Aguilhoante sentimento de ausência, entre a ânsia de regaço e as bicadelas pecaminosas da falta. Ali estava, diante de mim, ao virar de uma esquina, no final de um longo trajecto, de sala em sala, galeria em galeria, secção após secção. Esquálidas virgens medievas, reprimidas monjas holandesas, debochadas flamengas de dentes cariados, tinha visto todas. A piedosa mãezinha, a sonhadora donzela, a maléfica rainha. Só que chegara, entretanto aqui. A portentosa natureza em seu esplendor frutífero, a ave rapace em seu apetite voraz, tudo ali me era dado, como se ao alcance de um gesto, à espera do atrevimento das mãos. Foi então que o porteiro nos fez sentir que eram cinco horas. Hora de fechar. Amanhã abrimos pelas dez. Uma boa noite para todos.

25.5.06

O velho Chevrolet

Lembro-me que tinha o tabelier distinto em madeira, os estofos cheirosos em pele e um porta-luvas imenso. Lembro-me dos cromados do pára-choques, os faróis rutilantes. Lembro-me do seu flamejante vermelho. Lembro-me que mal chegava à janela, de pequeno que era. Lembro-me como era feliz sem reparar que havia tantos que andavam a pé. Lembro-me sobretudo que nada disso me fazia falta ou tinha importância. Hoje esqueci tudo. Houve um tempo em que os automóveis tinham os pneus pretos com uma cercadura branca, os homens usavam sapato escuro com peitilho branco. Houve um tempo em que nada disso parecia ridículo e a humanidade tinha tempo para cuidar de si. Houve um tempo em que se fabricavam automóveis e não electrodomésticos com motor.

22.5.06

A mãe Natureza

Longe de tudo e a tudo indiferente, o sol ainda por chegar, a névoa a sombrear a paisagem, um homem pesca. Longe, a cidade dorme, num tumulto inquieto de responsabilidades, pesadelos de vidas desejadas e ansiosas, despertadores estridentes e inamistosos. Longe de tudo e a tudo indiferente um homem, este homem, confunde-se com a paisagem. Uma névoa piedosa sombreia-lhe o eu, diluindo-lhe o ser, recebendo-o no regaço maternal da Natureza. Longe, muito longe, a cidade desperta, sem conseguir acordar.

14.5.06

O indiferente Buda

Tem de facto um ar ridículo, e tudo aquilo é de facto incompreensível. De quem o deu, já ninguém se lembra, nem a que propósito. As mais velhas da família recordam-se todas de que aquilo já andava lá por casa quando elas brincavam com bonecas de trapo. Quantas tardes passei com a gramática francesa aberta a esmo, a olhar para aquilo só por não haver nada de melhor para se poder olhar, esgotado de verbos irregulares. Um dia talvez se quebre, o olhar atónito de porcelana, o lápis espetado, o indiferente Buda. Nesse dia, colar-se-ão os cacos, pela certa. Ao fim de tantos anos, já não conseguiríamos passar sem ele, o ar ridículo e incompreensível daquilo. Cada um de cada geração, reconhece-se ali, ninguém se lembra já a que propósito.

11.5.06

A multiplicação do eco

Barricara-se ali quando a fui buscar. Entre entulho e fermentações muitas de dejectos vários, um cheiro pestilento atroava-me os sentimentos. O próprio silêncio fazia eco, multiplicando-se entre si, nada mais havendo do que o vazio. Não havia canto de parede que não estivesse escrito, palavras empedernidas de raiva, rasgadas com as unhas a sangrarem-se contra o cimento. Estava só. Pressentindo ao que eu vinha, olhámo-nos longamente. As lágrimas escorriam-lhe pela face. Perguntei-lhe, como se a medo, se queria vir. Respondeu-me, como se envergonhada, o murmúrio de um sim. Saímos os dois. Nada havia ali que lhe valesse a pena trazer consigo. A casa ainda lá está. Outros a habitam: a família sucessiva dos desesperados, de quem nos esquecemos no dia a dia formigante das nossas vidas. Eu de insignificante gravata ao pescoço, a pastinha ridícula na mão.

6.5.06

Para o dia da mãe

Quantas vezes eram só duas linhas, o que podia caber num simples postal. Se houvesse tempo para se pensar ia em cada letra um pensamento, em cada palavra um sentimento, em cada parágrafo um anseio. Assim era só a presença e a recordação. No «nós por cada todos bem» e no «espero que ao receber esta» estava, afinal, já tudo dito. O mais, eram as coisas ridiculamente carinhosas como o «olha lá, meu filho, não apanhes frio» ou «o pai não se esqueça de tomar seus os remédios». Amanhã, ao virar a folha de um álbum, um coração de mãe, a memória gasta pelo tempo, a sensibilidade ensarilhada pela velhice, dirá à vizinha do lado, pela milésima vez: «era este, um bonito rapaz. Escrevia-nos cartas tão lindas. Acho que ainda as tenho ali». No mais, é um mundo que já morreu.

3.5.06

Um deus por haver

A nossa vingança, depois do que sofremos ali, foi ter chegado um dia, sem aviso, e encontrar pela frente estes escombros do que foi para muitos uma prisão, a ruína do que para tantos foi um hospital, a degradação do que para todos foi o não termos outra vida para viver. Ao domingo alguns tinham enfastiadas visitas, outros trancavam-se por dentro, fingindo não as querer. De quando em vez um sumia-se. Imaginávamos ter morrido, para ficarmos contentes com a sua ausência. Uns dias depois mudava-se de assunto. Como isto nos entristece já sem tristeza. Quantos cravámos raivosas as unhas despedaçando-as contra aquelas paredes que hoje, ridículas, mal se têem de pé. Eu sei que não há Deus, pois a haver, teria vivido aqui, nesta miséria de ter sido nosso irmão. A haver, um dia encontrávamo-lo enforcado. Ao terceiro dia estaria enterrado com uma ladainha barata e umas pazadas de cal. Haja pena, por isso, pelos que não voltaram.

1.5.06

A invenção da memória

Mal se adivinha hoje, mas eu passava por ali aos domingos pela manhã. Eram tempos em que não havia lugar para onde ir, pessoas novas para conhecer, acontecimentos a que pudessemos chamar novos. Ao chegar perto, os passos a aproximarem-se, retinha a marcha, sôfrego de que alguém aparecesse. Aconteceu uma vez só, um vulto a fechar a janela que hoje apodreceu na realidade do que se vê. Se eu tivesse algum dia subido, teria tentado saber como se inventa o amor. Assim, ficou apenas esta grosseira memória, carcomida e enxovalhante.