
Com o tempo dedicara-se-lhe.
Na aparência exterior uma caixa, de antiquíssima madeira, lenho de velha árvore, uma de tantas de milenária floresta, oriunda do desconhecido, ali chegada Deus sabe por que mãos humanas, poupada, o Diabo ignora a que riscos da existência animal.
Sobrevivera, pequeno cofre e minúscula arca, couraçando-se naquele exterior paralelipipédico, ferragens cobreadas a dar-lhe austeridade, a ligeira ferrugem nas dobradiças a criar a ilusão de que era essa a causa da sua impenetrabilidade.
Agora estava ali, num lugar estranho, longínquo, ante umas mãos de si ciosas, percorrendo-lhe, como se a um labirinto sensível, os tímidos caminhos do que pareciam modos de lhe aceder, a inesperada forma de despudorar definitivamente o seu segredo.
Debruçado sobre si, estava um homem, navegando o mar azul de um adeus marítimo, a mão indefinida para o cais da vida a que jamais regressaria, míope de desejo, ela como companhia e essa noite a sua única decoração.
Ninguém sabe como se deu o milagre, ou o dia milagroso em que ocorreu o regresso aos vinte anos da ilusão, o coração apressando-se ante aquela reencontrada memória.
Ali estava, porém, e com ela a doçura passada e com o seu regresso o inesperado rubor da lembrança.
Ser-se novo e viver com isso a loucura entranhada de um mundo por haver, ser-se novo e ficar-nos na retina o momento único em que o mundo parece exemplo gritado aos outros, ser-se novo e ser a nossa nudez da alma tão altiva que nem o despido corpo nos envergonharia tanto. Ser-se novo, enfim, e termos de nós o anseio e dos outros a esperança.
Ninguém sabe como se deu o maravilhoso momento em que a antiquíssima caixa, de milenária madeira, sussurrou o milagroso modo de ser possível conhecer de si o que nem ela sonhava ser possível dar-se a conhecer.
Esgotados de nocturno cansaço, o mundo deu com eles, dias depois, o sol a pique, ciosos do caminho sensível da sua memória comum, a espuma do mar navegado encharcando-lhes a alma, esperançosos no que não fora, ansiosos pelo que não poderia ter sido.
Debruçado sobre si e a si dedicado, um homem escrevera este bilhete, sem razão, nem motivo, ou sequer o pretexto de uma intenção.
Lido por tantos outros, nenhum jamais soube como foi possível. O instante em que se dera o espasmo rouco da criação perdera-se no tempo, esgotara-se no espaço, findara-se aqui, neste momento de lembrar-te, nesta forma de esquecer-me.