É do livro que acabarei de ler, linha a linha, os seus três volumes. Uma prova, emendada, revista, entre a tipografia e as mãos de onde saíu. Um dia destes escrevi o nome de quem isto escreveu e, idiotamente calino, trocando tudo, letras, palavras, ideias e sentimentos, chamei-lhe Andersen. Ninguém deu conta. Quem reparou calou-se, poupando-me à imagem da ignorância. Vi isso esta noite, passeando pelos locais da minha existência. Perdão Ruben Andresen Leitão, ou desculpe-me Ruben A., já nem sei como se diz quando se quer pedir compaixão.
27.9.08
Os dias úteis
Acordei com ele, recebida a notícia da sua existência por amável mão. Foi nele que encontrei, entre tantas outras, esta foto de um livro que o tempo devorou e nela, na primeira fila do lado esquerdo, o António Ramosa Rosa, de quem me lembro inesquecivelmente o poema «Não posso adiar o amor para outro século não posso ainda que o grito sufoque na garganta ainda que o ódio estale e crepite e arda sob as montanhas cinzentas e montanhas cinzentas». É o blog Poesia dos Dias Úteis, homenagem a Vasco da Costa Marques e a tantos outros poetas. Gratidão a quem avisa, gratidão a quem salva a poesia de morrer esquecida.
15.9.08
A primavera do sentir
O que há de trágico na recusa é a ausência de certeza da pertença. Depois é apenas a redenção dos afectos, a sublimação da esperança. Todos os dias o mundo volteia sobre a expectativa de amanhã. Um dia tudo isso se torna literatura, ressequido o passado na forma de criar a rosa poética do dizer. Numa esquina do amanhecer dois jovens abraçam-se prometendo-se sonhos. E eu irmano-me naquele modo íntimo e primaveril de sentir.
13.9.08
A Família Piranga
Já ninguém se lembra, já ninguém o lê, salvo os que andam pelos alfarrabistas e coleccionam antiqualhas, como a T, que o quer ler, ou o blog da rua nove, onde fui surripiar esta fotografia da capa de um dos seus livros. Lembro-me de ter lido tudo, rindo com gosto, mesmo da adversidade, esconjurado o mau olhado com uma sonora gargalhada.
Ainda hoje sei de cor trechos inteiros das aventuras de Epifânio Barbosa, vindo das berças directamente para uma drogaria em Campo de Ourique, expedientoso na venda de tudo um pouco, de irrigadores para as aflições primárias a pós para exterminar as vagueantes baratas citadinas que a tribu campónia supunha serem os cantantes grilos da sua aldeia. Lembro por não poder esquecer a opulenta Ludovina, que passou da ménage doméstica ratinha e refogada para a criada de fora e ela Madame nas boutiques d'haute couture, o Tonecas, que metia em ganapo os dedos no nariz, comendo macacos e chapadas até se tornar cinéfilo e cineasta com os dinheiro do papá, a melena rebelde, a pose afectada, a inesquecível Fifi Antunes, esgalga de larica e ansiosa de boas viandas masculinas, ávida de promoção na pequena sociedade alfacinha, e, enfim, a avó Vicência, de bigodaça que nem um zelador da ordem pública na Esquadra dos Terramotos à Maria Pia, resmungante e ressonante que em todas as casas há uma velha para chatear e para bater!.
Lembro-me, pois, dessa exemplar Família Piranga, o arquétipo de falperrice lisboeta, pelintras a empinarem-se em busca do que os burgueses gozam, provincianos a renegarem a santa terrinha e as suas courelas, vivendo entre o prego e a aparência, plantando tronchudas nas marquises, pais e avós de muitos dos empenachados perús actuais da nossa prosápia, os alicerces da nossa cultura de bairro, aquilo que hoje ainda está, na versão pós-moderna, menos parola mas tão patega, mais anafados muitos mas por igual esfaimados tantos, ambiciosos, invejosos e dos outros raivosos.
Lembrei-me de tudo isso e de tudo isso me ri. Bom dia Lisboa! Bom dia todos. Onde estiveres, obrigado Armando Ferreira, obrigado tu Telma, que não te conheço, mas conheces o Armando Ferreira, esse mesmo, que escreveu a tristonha vida do sonhador contabilista, o Senhor Fortuna, mais o gozo da Glória, em êxtase total no meio de tachos e panelas mais o seu Toino, o magala conversado de toda a sopeira, e se ela tinha muito para conversar, que as manápulas também falam para onde as guiam os olharapos, e a Fama, que nunca li, eu sei lá quanto mais, que tenho de reuni-los todos, os que tenho, os que andam pela casa da minha mãe, os que salvar da venda ambulante, destino final de toda a literatura, enforcada no cordel, no sebo, na antiqualha, no desfazer de casas, entre mortos e seu herdeiros.
Lembrei-me de tudo isso e de tudo isso me ri. Bom dia Lisboa! Bom dia todos. Onde estiveres, obrigado Armando Ferreira, obrigado tu Telma, que não te conheço, mas conheces o Armando Ferreira, esse mesmo, que escreveu a tristonha vida do sonhador contabilista, o Senhor Fortuna, mais o gozo da Glória, em êxtase total no meio de tachos e panelas mais o seu Toino, o magala conversado de toda a sopeira, e se ela tinha muito para conversar, que as manápulas também falam para onde as guiam os olharapos, e a Fama, que nunca li, eu sei lá quanto mais, que tenho de reuni-los todos, os que tenho, os que andam pela casa da minha mãe, os que salvar da venda ambulante, destino final de toda a literatura, enforcada no cordel, no sebo, na antiqualha, no desfazer de casas, entre mortos e seu herdeiros.
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