28.2.06

Esgravatando com as unhas

Admito que esteja em escombros, concordo que está em ruínas, mas é à mesma uma prisão. Poder ser apenas um sonho mau, um péssimo momento, o fastio de um dia sem sair da grilheta das obrigações, do encarceramento dos deveres. Mas nesta vida celular, de rotina confinada, a mesma vontade de cavar um túnel, comum a todos os prisioneiros. Mesmo que não leve a qualquer saída, ocupa o espírito com a ideia da libertação.

27.2.06

O azul ou o branco

Teria sido num tempo em que as tardes eram suficientemente extensas para que se pudesse dormir, tranquila, a sesta, as noites tão grandes que era possível, sem esforço, ficar a ler. Teria sido num tempo em que numa daquelas janelas eu vi o alvorecer de uma ideia e p0r causa dela decidi não regressar. Dias depois zarparia o último navio e no vazio do porto eu compreenderia, enfim, o mundo que me restava. Teria sido num tempo em que se poderia optar por uma viagem ou por uma permanência. Hoje, olhando-à à fotografia da casa, de cuja janela tudo me sucedeu, hesito se é o azul ou o branco o automóvel que lá deixei. Não sei em nome de que ideia, por causa de que ilusão, ou a caminho de que erro, mas parti, do mesmo porto, num outro navio, a caminho do mundo em falta, a parte restante de mim.

23.2.06

E depois do adeus

Trancado, noite após noite, nos esconsos de um escritório, imagino que em redor exista o azul dos céus e o verde dos mares. Visto o mundo porém, desta nesga obtusa de janela, pelo intervalo esboroado das persianas, resta-me uma pálida estrela cintilante, tão longínqua e empalidecida que se diria poeira esquecida no firmamento. A esta hora, no silêncio morno dos desertos e na atroar galcial das cidades haverá por certo alguém para quem a vida, na sua pacatez, equivalerá ao mar da tranquilidade. Acenar-lhes-ia se os visse, se os sentisse ou se na sua longínqua diferença neles me reconhecesse. Volto porém para dentro, negando-me essa familiaridade. A esta hora absurda, vista a janela, o obtuso do intervalo e a palidez da poeira, reentro em mim e comigo adormeço.

8.2.06

A esquina da memória

É só mesmo porque, ao dobrar a esquina, nos cruzamos com a memória. Depois vem o quotidiano e soterra-nos com os pormenores do que fica. Podem por isso demolir o prédio, varrer a esquina, pode mesmo acabar o cinema e eu ter sido um dos últimos a passar por ali. No dia em que acabar a Europa, terá ficado, deste cinema, a esquina e o jardim ali tão perto, o da Parada.

4.2.06

O desespero em estremocense


Não, eu não queria estar aqui num hotel trancado, confinado a um quarto, amarrado a ter de trabalhar. Não, eu não queria que fosse isto, por ser um fim de semana. Eu queria, que fosse todos os dias e assim acontecesse pela beleza do que se vê, pela paz que se sente, pelo desejo que se tem. Eu sei que é Estremoz, eu sei que hoje é sábado, eu sei que já não posso dormir mais, eu sei que não quero ir.

1.2.06

Uma folha


Hoje é apenas uma folha amaralecida num álbum desarrumado num sótão. Mas houve um momento em que, por um instante, estes homens suspenderam a sua vida para um instantâneo, como se a eternidade os recolhesse. Hoje estarão todos mortos, e ninguém chorará já convictamente a sua perda. Não sei se algum deles foi o que trouxe a fotografia, ou se ela veio no lote das que se vendem por aí, ao molho, pelas feiras de antiqualhas. Está escrito a lápis que tudo isto foi em Nankin, não sei como, nem com quem, nem sequer porquê.