30.11.08

A queda

Espera-se sempre grandeza no trapezista, na justa proporção do seu risco. Estando em causa a vida, que jogue nisso tudo o que quer viver. Claro que, às vezes, a corda bamba é um ténue fio, que mal se imagina debaixo dos pés. Senti-lo, é então a vertigem de todo um mundo de equilíbrio a desmoronar-se. Sob o incerto holofote da precária glória, há a figura ridícula, transido de medo, porque desta vez cair é morrer. O público, ignorante, ri, pedindo mais.

29.11.08

O radioso

Um dia de frio, de nuvens, de humidade, um dia em que se gela sem sobretudo e em que o sobretudo faz suar. Um dia em que apetece passear e se deseja voltar para casa. Um dia em que se come massada de peixe como quem jejua a maçada da carne. Sem vontade nem desejo. Um dia, porém, em que num instante fulgurante, o sol ilumina, portentoso e quente, uma janela. Ei-lo aprisionado como memória, sentido como eternidade.

Manhã alta

Ás vezes é só aquela sensação de que, à falta de melhor meio, a eliminação resolve. Passa isto como a dor de cabeça desta manhã. Tudo vem a propósito de uma peça que passou na Cornucópia e eu não vi, comigo a teimar que se chamava Kurt quando era Karl Valentin o seu autor, baralhado, sempre a lembrar-me do Brecht. Depois, já pelo anoitecer, foi a lembrança do nome de todos quantos escreveram para teatro e como se escreve para teatro, aqueles separadores banais entre as falas, indicações ao encenador, sem arte, sem estilo, apenas frases necessárias, a voltearem como um vento frio e desabrido. Esta manhã, depois de uma noite povoada de Ionesco's e Beckett's e Strindberg's e tantos mais, acordei assim, cheio de frio. Talvez uma aspirina ajude, primeiro a resolver a dor, depois a confusão. No mais é uma questão de cobertores, a ficar, ou de um banho quente, a levantar-me, que a manhã já vai alta e na vida o palco está deserto.

23.11.08

A ideia de casa sua.

Cheguei, enfim, aqui. Longa viagem, o mar encapelado, a bagagem acumula-se agora no armazém da alfândega, à espera de ser desembaraçada. Comigo veio apenas o necessário. É a questão do viajante, a agonia do exilado, o tanto que se deixa ficar atrás de si. Não sei se me reunirá parte do que é memória. Ao olhar para estas manchas ferruginosas, que a água gelada ladeia como uma carícia fria, penso que penosa foi a partida. Um pouco adiante deste lugar há um renque de casas em madeira. Talvez quem ali viva tenha nascido ali, a ideia de casa sua se resuma a deixar-se ficar.

16.11.08

Um roçagar de asas

Adormece-se rápido, tudo se afunda no túnel negro do sono, e o corpo, indefeso, deixa a alma vogar para os antípodas do ser. O homem fica à mercê do que não imagina. E de repente, alagada a fronte de suor, sabor sapídeo na boca, hálito sulfúreo, moída a ossada, regressa-se das profundas do Inferno, da desolação lunar do pesadelo. Esteve-se lá, no território onde o medo se torna raivoso cão, onde o apelo doce a não regressar é prenúncio fatal de comoção. Um roçagar de asas abandona a beira da cama. Acende-se a luz para se ter a certeza de que foi sonho. Ao longe, o chorar de uma criança é o único sinal de pesença. No apartamento ao lado, um casal jovem suspira de entusiasmo. A vida retoma o seu lugar, com promessas de existência.