25.6.06
21.6.06
Minhau!
Musculado, musculoso, imponente, majestoso. Em torno de si, o arquétipo do irrealizável, um estrepitar de fantasias de vigor e de potência. Creio que era porteiro de bar pela noite, dormia pela manhã, ocupava a tarde em musculação. Uma americana esfaimada levou-o como berloque. Hoje é um penderucalho, entre chás e biscoitos. Vai ao super e arruma camisolas de lã entre rendinhas femininas. Talvez faça miau. Já nem sei.
17.6.06
A eternidade em cada instante
Se um homem soubesse o que a vida lhe dá, trazido pelo excepcional do acaso, como a chuva inesperada ou este desejo de precipício, viveria. Em cada dia da sua vida, deixar-se-ia seguir, os ventos alíseos do afecto, a vaga refrescante de um grande mar. Mas um homem não sabe. Só quando se apercebe que teve vinte anos revê a sua vida, mas já viveu. Se um homem soubesse o que é ter por companhia a tristeza aos vinte anos, e ela ficar-lhe, como uma velha fotografia, desbotando-se-lhe no tempo, roubando-lhe o entusiasmo de viver, compartilharia com tantos a sua solidão. Se um homem soubesse que cada instante tem em si a eternidade, diria bom dia ao dia e viveria definitivamente aquele dia.
Mais uma vez
Em cima de um monte de escombros, na esperança de poder recomeçar, há um homem. Entre os destroços do que em tempos foi uma vida, uma casa, uma família e um lar, esse homem está ali como se pela primeira vez. Descontado o desânimo, a força férrea amarra-o ao desejo de reconstruir. A sua prisão é essa raiva à adversidade. Na esperança de poder recomeçar, entre um monte de escombros há um homem, mais uma vez.
16.6.06
A infinita regressão
Chama-se «A mad tea party». Desenhou-o John Tenniel, que faleceu em 1914. Tenniel foi o ilustrador dos livros do reverendo Charles Dodgson, que passou para a História da Literatura como o autor dos livros de Alice, sob o nome de Lewis Carroll. Especialista em lógica, ele coloca no diálogo do que a tartaruga disse a Aquiles o paradoxo de Zenão sobre a infinita regressão. Sucede assim cada vez que a verdade de P depende da verdade de P+1. O primeiro que quebrar a cadeia da verdade, tropeça na solidão da mentira. Só progredindo nos salvamos.
15.6.06
Um dia argênteo
É a transmutação alquímica da vida, o local onde o sal do mar se cruza com o doce dos rios, o instante criador, o nascer de um sentimento. São os fuidos vitais em ebulição, o corpo a ferver, a alma a sangrar. Tudo isto pode ser reduzido a uma fórmula ou a uma equação ou compreendido poeticamente, num abraço fraterno, na volúpia de um desejo, no vazio de se estar só.
13.6.06
Eu vi um sapo
O sapo feio, o que passa as noites no pântano a coaxar, descobriu um dia que em seu redor, as princesas se tinham transformado em rãs. Se houvesse histórias de beijos que os transformassem em príncipes dos afectos e reis do amor, eu mesmo secaria os charcos, treparia às árvores e, em pássaro transformado, aprenderia a voar.
10.6.06
O horizonte lunar
Enfeitiçada lua em noite quente, ei-la a inundar ventres de loucuras, transtornando as mentes já despertas para a vida. Surgiu-me, assim, inesperada, como se o acaso negro de uma doença ou o presságio de um sentimento amável. Nunca mais da mesma janela eu te verei, ó lua, minha companhia desta noite. Silenciosos, os pássaros, aninhados na sua plumagem, nem ousam. Ao longe a cidade, agacha-se como se para dormir. Um resto de luz despede-se em azul. Enfeitiçada, louca e transtornada, a lua inicia a sua subida, rápida, na parábola infinita dos céus. Rezaria, sabendo, pelo bem de todos os que são bons. A silhueta da tristeza marca-me o horizonte do impossível.
Mulher em casa de homens
Envolto na luxúria do sonho, entre o inesperado de um sorriso breve, a meia-cara, o cálculo de um olhos convidativos, enevoado pela duvidosa mistela peganhenta que se colava, queimando-a, garganta abaixo, o homem sorria. No alarve do despropósito, mal se ouvia o indiferente pianista martelando teclas, símeo musical daquele local animalesco. As paredes escorriam um ambiente de farsa encenada e de amores de encomenda. Foi então que ela entrou, varrendo em círculo o soturno local, como se buscando a sua presa. Casa de carícias de aluguer, há nela sempre uma que mais seduz, fingindo-se a escolhida. Minutos depois, sentavam-se as duas, ela a estranha mulher em casa de homens, a outra a indiferente criatura apta para o que viesse. Foi então, no preciso momento em que tudo se explicaria, que o homem acordou, alagado no seu próprio suor, a ressacada de um noite de solitária bebedeira babada no lençol, um longínquo piano num rádio que ficara por desligar. Nesse domingo de manhã, o sol começava a raiar e com ele a dor profunda do não saber sequer o que fazer.
9.6.06
O lugar da indiferença
Lembro-me da sensação de frescura nas costas, a imiscuir-se pelo pano cru da camisa, como se a arrefecer-me os ímpetos ansiosos de ti. Lembro-me de os nosso pés nús afagarem o musgo que atapetava o chão daquela cratera que a Natureza nos dera, como o refúgio dos nossos sonhos. Lembro-me das palavras amáveis e das esperanças que nos demos, de mão dada, a um e a ao outro, a jura de que havia lá fora, para além da luz, um mundo que queríamos construir para nele viver. Hoje aqui estou, refugiado neste lugar afundado e de todos escondido, enregelado de tristeza, calçado de indiferença. Eu comecei a morrer na tua vida, só a luz me cega, cruel e acusadora. Tudo o mais é como se não existisse.
6.6.06
Agora que o dia cai
Não há seguramente, pelos muitos vexames que o dia nos trás, cena mais humilhante que um dia findar, de borco, na cama solitária que ficou por fazer desde a manhã. Acumule-se a loiça pela cozinha, que há um halo de festa que perpassa ainda por entre a desarrumação. Haja roupa por lavar e ainda um pouco por todo o lado, que um perfume de festa estouvada pode simular-se com esse vestígio do despir-se descuidado, uma peça por cada sala. Mas agora que o dia cai e uma noite morna começa lá fora e com ela uma cidade que surge das entranhas do seu bom viver, resta-me dormir profundamente e um ressonar primitivo a marcar audivelmente a animalidade de tudo isto. Não há vexame maior do que a humilhação de uma cama solitária.
5.6.06
A esplanada da vida
Escorria-lhe pelas costas um suor ácido de uma calor irritante, fechavam-se-lhe os olhos de cansaço. Já nem a dor formigueira dos braços fatigados sentia, as mãos cortadas da pega de uma pesadíssima mala. Chegara no comboio da tarde. Em frente a si, uma cidade morna olhava-o com estranheza. Um homem chegava, ao apeadeiro da vida, arquejando, ajoujado à carga do seu orgulho. Sentou-se, enfim, num recanto sombrio, protegendo-se da vergonha de ser visto neste transporte nómada de si. Ninguém sonha o que um homem sente, ninguém sabe o que um homem cala.
2.6.06
A ira dos céus
Ficou-me para sempre o ar severo, a contante insatisfação, o esgar reprovador. Cada gesto, um simples soerguer de sobrancelhas abatia-se sobre nós como se a ira dos céus nos fulminasse com relâmpagos. Lembro-me que ao domingo nos davam arroz doce. Lembro-me dos que, de castigo, ficavam a ver os outros comer. Alguns choravam por não terem uma mãe, outros já nem se importavam com isso. Lembro-me deste dia, de cada um de todos esses dias. A doença dos meus afectos nasceu aqui, como uma crise de crescimento.
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