Houve já aqui um tempo de suspiros e águas correntes, amores venais e ilusões de ternura paga. Houve já aqui paixões de aluguer, carícias encomendadas, suspiros exagerados. Tudo aqui se simulou e nada parecia proibido. Houve já aqui um tempo em que homens e mulheres se entregaram uns aos outros em cadeias de união carnal, num deboche demencial, que nenhuma lei parecia impedir. É um dos lupanares de Pompeia, o bordel que a lava conservou. Passo aqui indiferente à ladainha do guia turístico, neste fim de tarde, perto da hora do jantar. Lá dentro nada há e ninguém ficou. Estão todos mortos, e não há sequer testemunhas para o recordar. A luxúria, a agonia do prazer infindo, os sentidos exaustos e o corpo insaciável, hoje é isto, este momento petrificado, imóvel, estático, simbolicamente vazio, um ponto de passagem num passeio, o hotel à vista, meus senhores obrigado pela visita, é só o que a vossa generosidade me quiser dar.
30.3.06
Uma lembrança, se faz favor
Houve já aqui um tempo de suspiros e águas correntes, amores venais e ilusões de ternura paga. Houve já aqui paixões de aluguer, carícias encomendadas, suspiros exagerados. Tudo aqui se simulou e nada parecia proibido. Houve já aqui um tempo em que homens e mulheres se entregaram uns aos outros em cadeias de união carnal, num deboche demencial, que nenhuma lei parecia impedir. É um dos lupanares de Pompeia, o bordel que a lava conservou. Passo aqui indiferente à ladainha do guia turístico, neste fim de tarde, perto da hora do jantar. Lá dentro nada há e ninguém ficou. Estão todos mortos, e não há sequer testemunhas para o recordar. A luxúria, a agonia do prazer infindo, os sentidos exaustos e o corpo insaciável, hoje é isto, este momento petrificado, imóvel, estático, simbolicamente vazio, um ponto de passagem num passeio, o hotel à vista, meus senhores obrigado pela visita, é só o que a vossa generosidade me quiser dar.
29.3.06
O saciar da carne
Há, no imediato horizonte além do qual tudo me é desconhecido, a presença brumosa da ruína, a incerteza da subsistência, a dúvida sobre a própria permanência. Há no lugar distante que a vista alcança, o saciar carnal das saudades de terra. Aproximámo-nos então, recolhendo cautelosamente o pano. Ao ver o meu reflexo na água, vi na agonia daquele espelho, uma imagem de estranheza, como se exilado de mim, vivesse em terra estrangeira. Puxados a remos, acostámos exaustos.Um cenário de terror aguardava-nos então. Nada sobrevivia naquele inferno; corpos estropiados, semeados a esmo, marcavam, num rio de sangue e de vísceras estraçalhadas, a passagem do homem por ali.
26.3.06
Domingo de manhã
Houve um tempo em que, por ser domingo, eu sonhava com a tarde no cinema, em que, sendo domingo, o almoço era melhorado, em que, apesar de ser domingo, não íamos à missa nem ao futebol. Houve um tempo em que, ao ser domingo era um dia diferente, festivo, familiar.Houve um tempo que aos domingos eu estava contente. Hoje, sentado aqui com os papéis amarrotados desta escrita, devorado pelo trabalho que me espera e diminuído pela culpa de o recusar, já que é domingo, nem sei o que sinta, o que faça ou o que diga. Amanhã é segunda feira. Tudo passa, até o tempo em que havia domingos.
24.3.06
Os passos erráticos
Não sei se sou o criador do que me surge: às vezes é só uma luz irradiante, uma nesga de céu, o horizonte possível para além de uma curva em estrada desconhecida.Não sei se não sou, eu próprio, o que me surge. Espero-me, pois, aguardando-me, diluído na bruma, indiferente ao norte perdido, aos passos erráticos do que me chega.
23.3.06
O medo das formigas
Lembro-me que era miúdo e que íamos para ali de farnel. Hoje, na confusa memória e na má fotografia não dá para se perceber, mas está lá tudo: as migalhas do folar, o termos do café, o medo que eu tinha das formigas, a gorda Angelina a arfar de cestos, o meu tio Saúl a dormitar ao sol. No mais morreu tudo. O lugar é uma urbanização de casas indiferenciadas para gente anónima e eu próprio já nem saberia ir lá.
20.3.06
Irreconhecível criatura
Depois de tentar, nos últimos dias, por todos os meios e mais alguns colocar aqui fotografias, sem as quais este blog não tem sentido nem vida, e após recusas e falhanços, esperanças e desilusões, estava hoje disposto a não começar o meu dia sem vir aqui dizer ao menos esse «não consigo!». Os deuses tiveram pena! Pronto, sou eu: há cinquenta e um anos atrás, como se nota, feliz sem saber o mundo sem sentido e sem vida que me esperava. Carneiro que sou, astrologicamente pelo menos, estou quase a comemorar o facto, dando conta que não sucedeu, que ainda é a melhor forma de se celebrar uma tal coisa.
16.3.06
A falésia
Tínhamos chegado nesse Verão talvez mais cedo do que em todos as outras vezes antecedentes, ou então terá sido num daqueles fins de semana que terminam no pesadelo do domingo à noite, a agressividade do regresso, o insuportável do arrumar sacos, malas para carregar, o não haver jantar que apeteça, as crianças chorosas de sono, os pais desiludidos do esforço, o amanhã ser segunda-feira. Lembro-me do exacto momento, o do reencontro com a brisa marítima, o acre marítimo daquele lugar. Era o tempo da melancolia sem motivo, das férias por obrigação, da família como atrelado. Voltei hoje aqui, fotograficamente apenas, tolhido de desejo, esquecido da saudade.
11.3.06
À mercê do capim
Era eu, branco, e o Jéjé, mulato, filho do funileiro Lucas. O Lucas deve ter morrido, o Jéjé nem sei se vive, eu ando por aí. Um dia andava eu miúdo e uma miúda como eu, brincando no meio do capim. Eu era tão miúdo que me metia com uma miúda no meio do capim, para brincarmos aos jantarinhos para as bonecas. Jantarinho foi esse que aquilo largou a arder. Era eu, branco, o Jéjé, mulato, pretos de fuligem, a tentar apagar capim a arder. A Luizinha fugiu para casa com medo de apanhar. Estamos todos, uns velhos e outros mortos, um destes dias à mercê de sermos engolidos pelo crescer o capim. Talvez sobejem as bonecas da Luizinha. Hoje já ninguém brinca aos jantarinhos, hoje ninguém pega fogo ao capim.
8.3.06
A carreta das almas
Besta de carga e animal de tiro, à força de braços e de dentes rilhados, rangendo a ossada e babando-se do esforço, ei-lo, excrecência de humano atrelado à funerária carreta do seu ganha-pão. Chovia copiosamente e da janela larga do esplêndido hotel, rimo-nos todos, turistas de ocasião, imenso e a bom rir. Eu tirei esta fotografia. Na aparência, ele seguiu o seu destino de fome, na realidade persegue-me de cada vez que o olho e me revejo, a alarvice de mim na indiferença por ele.
3.3.06
De pé, ó vítimas da fome!
A meu lado duas anafadas matronas soltavam gritinhos nervosos, entreolhando-se carregadas de rubores e sub-entendidos. Tímidas, refugiando-se nos refolhos do seu recato, um par de pálidas gémeas bexigosas, faziam com a amplitude da mão o gesto obsceno de lhe medir o tamanho, e adivinhar a potência. Foi na excursão à Capadócia. Não que eu lá tenha estado, mas só porque poderia ter acontecido.
1.3.06
O ciclo vital
Seja o cheiro fétido a lenha podre, a urina ressequida de um gado que se aninha, encurralado nos confins húmidos deste casebre, aquecendo-se ao próprio bafo. Seja a memória de uma infância a pé descalço, alimentado a casqueiro duro e a uma malga de caldo em que boiava uma, com sorte duas, rodelas de um chouriço bedunguento. Seja a miséria do local e a fealdade da recordação. Seja esse o chiqueiro a que chamo as minhas origens. Na porta aberta, na lenha empinada a um canto, no bolor e tudo o que dele exala, eu sinto o húmus de onde saímos, a putrefacção em que nos tornaremos.
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