30.4.06

Um céu em azul

Vinha eu de passeio por aqui e surgiu-me de súbito a ideia de aqui viver. Entre árvores e outros verdes. Com a hera a trepar-me pelas pernas, os pássaros a cantarem-me na cabeça. Abrindo de par em par a janela da alma e vendo, enfim, um céu em azul.

29.4.06

Acordar cedo

Escreve, emenda, rasura e rasga. Sente e não diz. Quando pensa, não fala. Quando devia, não escreve, quando o lêm, é já tarde demais. Há nesta casa fragmentos de tanta gente que sofreu em literatura, riu-se em cores e odiou, com as próprias mãos esculpindo a cena gloriosa do seu ódio. Estive aqui, atento de tão míope, a decifrar a frase «quem adormece, com a ideia do acordar cedo, pode dormir descansado». Era o Teixeira de Pascoaes. Deixai-o dormir, o sono profundo em que sonha, brumoso entre saudades, um mundo que já não há.

24.4.06

A irrequietude do olhar

Predador e rapinante, senhor dos céus, traja-se de um estranho hábito, talar e mortuário. Ao entardecer, recolhe, sempre em bando, a árvores fronteiras a locais onde vida serenada, adormece. É o símbolo desta cidade, companheiro de marinheiros que já não há, amuleto de fiéis defuntos. Olhando-o, porém, na irrequietude do seu olhar, percebe-se o que é o inatingível, o momento íntimo da arreigada solidão, o inescapável do ser.

23.4.06

Um assunto já visto

Eram cinco da manhã de um dia de chuva, que o frio enregelava. As portas só abririam às nove. Quatro horas depois, descobri que era domingo. Tinha de voltar depois, muito mais tarde, pois segunda-feira era dia feriado. Voltei na terça, de novo às cinco. Pelas nove soube que tinham mudado de sede. Ao fim da tarde, esgotado de esperar, com as portas quase a fechar, informaram-me, então, que o visto era desnecessário, tinha sido abolido na semana anterior. Podia afinal seguir viagem, sem quaisquer dificuldades, não fosse o internamento num hospital, a curar uma pneumonia.

19.4.06

Um número num catálogo

Ainda hoje me impressiona quando olho para eles, como se não quisesse que eles me vissem. No seu olhar baço eu vejo a sombra de uma vida queimada. São fabricantes de fósforos. Por um segundo de luz, viveram uma eternidade nas trevas. Hoje a sua miséria, a sua infelicidade, não chega a ser uma acusação nem um ressentimento, tão pouco um remorso. É, para nós todos, uma completa indiferença. A sua fotografia, ridícula de má imagem, aguarda o funeral da catalogação, para que se suma de vez, incomodativa que é, no coval do tranquilizador esquecimento.

16.4.06

O lugar e a tarde

É ao fim da tarde que num lugar destes já não se aguenta de tanto estar só. Começa por não se sair à rua, por se não ter onde ir, depois ferramo-nos a nós, por não termos com quem estar. Uma manhã dão com um corpo sufocado, de tanto a si próprio se agarrar. É ao fim da tarde que eu escrevo isto, neste lugar, dentro de mim.

15.4.06

Uma partida de cartas

Soprava um vento morno e empoeirado vindo das areias do deserto. A hora do jantar aproximava-se e com ela um odor adocicado vindo das cozinhas. A meu lado uma velha inglesa e um ainda mais velho médico alemão, jogavam uma interminável partida de cartas. Vogando a meia força, tínhamos o Cairo como horizonte. Bocejando de fome, entretinha-me com tudo e com nada. O voar errático de uma mosca, no fumarento «deck», duas ou três linhas de um jornal francês, qualquer coisa que me ocupasse o espírito. Creio que foi então que rabisquei este postal para casa. Enderecei-o a mim próprio. Quando chegasse tinha alguém que me escrevera, a alegria de qualquer viajante sozinho.Encontrei-o hoje.

14.4.06

Gloria!

Lembro que o carro ficava debaixo de uma árvore, para que o encontrássemos fresco, ao regressar. O mais, são só memórias de sofrimento: os sapatos de verniz mordiam-me os pés, o colarinho apertava-me o pescoço; estava-se de pé parte do tempo, de joelhos horas a fio. As ladaínhas, incompreensáveis, diziam-se, rangendo-as, em latim. Ficou-me por isso, como um tormento, apenas a ideia de um Cristo eternamente pregado na cruz, o Pai indiferente, a Virgem Mãe rojando-se a seus pés. Ao domingo os velhos ficavam contentes e eu comia amêndoas. Ao arrumar os sapatos, vendo-lhe no verniz estalado o sulco quebrado do seu uso, sentia que a vida era imperfeição. Quanto ao Cristo, acho que continuava, esquecido, pregado na cruz, secula seculorum.

12.4.06

A individualidade do eu

Caminha-se pela areia e no recato daquele lugar solitário deixamos que a Natureza nos invada trazida pela brisa fresca da manhã, levada pelo ir-se da noite. Habituados à escuridão os olhos preenchem-se com o nascer rápido do sol. Atrás, no começo do caminho que se fez, a azáfama dos pequenos almoços, chega-nos em sons abafados, vinda de um hotel que se anima para mais um dia. Entre os que dormem, um ou outro sonha. É tudo a ilusão de um momento, a minha com a diferença de ter exterior. Daqui a uma horas partimos para as entranhas do nós, para a indiferença ao que nos rodeia. O sol a pique retira-nos a própria sombra. Reduzidos à nossa individualidade, estaremos então mais sós.

9.4.06

Plaza Colón

Alguém, em tempos idos, viu, viveu e sentiu isto. Hoje é um postal amarrotado, vendido ao lado de outro lixo, no rodapé da vida, no desinteressante dos interesses. Alguém, num mundo já morto, amou sofregamente aqui e aqui se corroeu de rancores. Hoje é um pedaço de papel ressequido. Olho-o, neste domingo cinzento, indiferente, sem cuidar de saber onde é ou onde foi. É uma das muitas Plazas Colón, com acento no segundo «ó», já que mo perguntam.

8.4.06

Saber dizer

Dizem-me que está lá fora um dia lindo de sol. Dizem-me que há crianças que estão na rua para o seu primeiro passeio, velhos que saem à rua sem saberem que é pela última vez. Dizem-me que, ao espelho da fantasia, há mulheres sós que se maquilham para ninguém, homens, na rua da amargura, que fumam solitários cigarros, em cafés esvaziados e sem razão. Dizem-me, enfim, que há sempre uma janela aberta na esperança de cada primavera. Dizem-me que logo vem a noite. Dizem-me que eu já não deveria estar aqui.

7.4.06

A decadência das convicções

Não sei que dura religiosidade, acre misticismo, adocicado paganismo recolhi aqui, neste momento ortodoxo de uma festa que sempre e deixou indiferente. Cresci a celebrar o Natal e as prendas, a desconsiderar a Páscoa e o seu folar. Depois, era o receio das amêndoas e dos dentes podres. Hoje, na decadência das convicções, tudo sentido de entre o que havia para sentir, idos mesmo os próprios dentes, secas as esperanças na salvação, é apenas uma fotografia. Vejo-os, fiéis e convictos virando-me as costas, como merece a minha danação.


4.4.06

Vida de lagarta

É o museu da seda, em Soufli. Chega-se aqui fazendo caminho pela linha do caminho de ferro. Pé ante pé por sobre as chulipas, ao fim de umas horas as pernas tremem, descontroladas, de cansaço. Só a macieza do lugar a adoçar-nos os sentidos, o odor das amoreiras a acariciar-nos as narinas, a beleza dos corpos engalanados a acicatar-nos a imaginação compensam o esforço. Há quem faça a viagem pela estrada, mas não ao mesmo lugar.

2.4.06

A lamúria contida

A esta hora, indiferentes a outras obrigações se não de a jantar o que calhar e dormir quando vier sono, há seres humanos para quem o único horizonte é o azul dos céus, o único enigma o aparente sem fim dos rios. Trancado no que chamamos de vida civilizada, hoje domingo, nem nisso penso nem no que aqui escrevo, para que não pareça que me lamento com isso e se irritem mais comigo e com estes dissolventes carpidos.

1.4.06

A mala posta

Quebradiça loiça, exposta ao sol, absorvia refractária o calor solar daquela manhã de Verão. Estávamos tão longe de tudo que uma simples estação de correios eram trinta quilómetros a pé. Naquele dia eu decidira-me a telefonar. Esperava paciente a minha vez, a central manual a aguardar acesso à rede. De súbito, quando menos esperava, consegui-se ligação. Era ainda no tempo dos infinitos repetidores, a voz reflectida de «relais» em «relais», o tiquetactear de mecânicas engenhocas. «Um momento, disse-me a familiar operadora, Lisboa está em linha». Segurei nervoso o auricular. A meu lado um velho gritava ao bocal, como se para um interlocutor inexistente, do qual nem o eco lhe chegava. A chamada, entretanto, caíu. Tentamos amanhã, ou mando um postal. Afinal, daqui a doze dias estará aí.