28.1.06

O dia da visita

Talvez por ser sábado de manhã, hoje quando passei, não havia ninguém na rua. E, no entanto, o prédio ali estava. Por detrás da sua majestade caduca, ainda restavam centenas deles, aqueles que a família não queria ou já nem família teriam. Os vidros partidos, o reboco esboroado, no interior um frio tão glacial como o que lhes vai na alma. Amanhã, por ser domingo, talvez venha o sol e uma ou outra visita apareça com um farnel e umas revistas, para os entreter por uns momentos. Vão-se depressa, as crianças fartas de velhos, os adultos com medo de o serem. Hoje, depois de eu ter passado, e porque é sábado, não ficou ali mais ninguém.

26.1.06

A mala por fazer

Às vezes é só o desejo ferroviário de partir. O colocar a mala na rede por cima do assento. Esperar que ninguém nos acompanhe na carruagem. Abrir o jornal e adormecer, na ronronante viagem. Num qualquer apeadeiro, perdidas já as saudades de tudo, e ainda sem saber para que destino, mirar todos e cada um dos que entram a bordo, como se houvesse neles uma razão que a nós nos falta. Às vezes é só ficar eternamente no cais, a mala por fazer. um itinerário pelos carris do sonho pelas estações da ilusão.

24.1.06

O sobejo da velha mala


Muitas vezes é como um favo numa colmeia, onde se acotovelam gerações. A promiscuidade dos sons, a repugnância dos cheiros, o desventrar de todas as intimidades. Os ganidos do que dói, o estretor de quando se morre, o soluçar baixinho os males de amor, tudo se sabe e nada se evita. De quando em vez vaga um cubículo, o último porque alguém se jogou pela janela abaixo. Morava ali, incógnito, há poucos meses. A renda, penso, ficou por pagar, a única mala que tinha como coisa sua, de tão velha, ninguém a quis.

23.1.06

Mayday, mayday


Às vezes é haver Deus, ou ir-se sentado no banco de trás, por ter chegado ao aeroporto no último minuto. Outras vezes teria sido bem melhor ter terminado tudo ali. Ficou o sobejo desta fotografia: os amigos espantam-se em larga ênfase, as tias falam em milagre, com uníssona devoção, e uma pessoa, mudando de assunto, vira a página, já esquecido, quase, de como foi.

22.1.06

A restituição dos afectos

Eu sei que é apenas um momento desta rua e um seu segmento. E sei que nesta vida por viver será um dia seguramente um hiato vazio na minha memória em erosão. Esta noite, porém, tendo por companhia esta intragável aguardente, e um salmão fumado, coisa que sempre detestei, talvez nem as saudades de casa me restituam os afectos. Acordei há pouco. Era noite. Aqui, aliás, é sempre noite. Somos quatro neste hotel. Um de nós nunca sai do quarto. Se já morreu, foi-se silenciosamente.

17.1.06

A decência de ficar

Chegámos tarde com a noite presente em todos os escaninhos do lugar. Jantou-se ensonadamente, dormiu-se, enfim, um sono profundo. Ao amanhecer, ali estava, a memória presente em cada canto. Foi só o tempo de descer a rua. Esta fotografia mostra o que poderia ter sido viver decentemente a vida, decidindo ficar.

16.1.06

O estreito dos Dardanelos

O desejo de não regressar! Amanhã podia expedir-se daqui uma carta e em duas linhas nem dizer porquê. Só quem viu uma anoitecer assim entende o que é o desejo de não voltar. Prolongar no tempo, restringir no espaço, permanecer aqui, por motivo indefinido e singular. Há na noite um odor embriagante, uma aura de milagre. Quando com o anoitecer definitivo, já nada se puder ver, sente-se ainda, adivinha-se sempre.

15.1.06

O raio verde

O momento é fugaz. A ciência explica-o pela refrangência da atmosfera. Mas é da excepção que nasce a maravilha. Exactamente no ponto, no lugar e no instante em que o ocaso coincide com o horizonte, surge, inesperado, o raio verde.Desaparecida a sensibilidade a todas as cores, ela fica, esperançosa, verde, a cor remascente, o símbolo renovado do dia de amanhã. Transidos de comoção, guardávamos em silêncio o segredo do que víramos, as mãos dadas, a alma a chorar. Hoje é só uma fotografia num álbum, a memória longínqua dos amores de verão.

11.1.06

Bem-vindo, pois!


Há, nesta masmorra, um túnel que eu escavo diariamente ansiando por uma fuga. Começou por ser uma ideia, depois um sonho. Um dia acordei e era uma ambição, nas noites frequentes de insónia, um pesadelo. Há nesta ideia de escavar daqui a minha saída, uma ocupação contra a loucura, a esperança num dia depois. Esta manhã, porém, vazio de mim e ausente de tudo, aqui precisamente neste canto de confluência do onde durmo com a latrina em que nos tornámos, descobri a mágoa de um achado, o de que o túnel, esse subterrâneo nocturno cavado com as minhas mãos, rasgado com estas unhas e perseverado com os próprios dentes, na loucura demente de o ter feito, desembocara onde começara. Estava de volta aqui, muitos anos depois.

Uma ideia apenas


Às vezes é só mesmo a vertigem da ideia, a de uma doença como solução. Confinado a uma cama, recluso numa enfermaria, eis aí a justificação plausível para se poder parar. E, no entanto, quantas vezes nem esse favor se recebe da vida. Morre-se num dia ocupado, deixa-se o embaraço da agenda a meio, a vergonha de compromissos por cumprir, a fatalidade das responsabilidades por honrar. Aos amigos, mesmo, quantas vezes calha mal o dia do funeral. E o corpo, resto inerte do que houve, a aguardar numa capela de igreja porque é mais rápido assim, o serviço mortuário religioso está mais à mão. Às vezes é só mesmo uma ideia, mas a vida vertiginosa em que se vive, nem lhe dá tempo para viver, mortos que estamos e de cansaço.

9.1.06

Arco de Baúlhe


A linha marca o intervalo e a importância. Cheguei num pouca-terra interminável, o vento gelado a entrar por todas as frinchas de uma carruagem de museu, a locomotiva aos sacões. A arrastar-se, qual chiante carroça de bois, o comboio, vagaroso, entrou finalmente na diminuta estação. Um friso de casinhas, caiadas a branco, desfilam-me agora pela janela, uma sucessão de nomes conhecidos: «Senhoras», «Homens», o armazém dos sobressalentes e por fim, edifício principal, gabinete do chefe da estação e, eis, «Arco de Baúlhe», completo enfim o ritual familiar da entrada na gare. Cheguei. Não é, como da outra vez, o correio da noite, comboio fantasma do arranca e pára, viajante nocturno, visitante preguiçoso de todo o lugar ermo e apeadeiro vazio; nem o rápido das cinco, o «foguete» da minha infância, o «Sud Express» da minha juventude, o «Alfa» dos dias de hoje. É assim uma coisa intermédia, o comboio regional que vai dar entrada na linha número três. Desço, comigo apenas uma mala camba e um saco plástico amarfanhado, o resto do improvisado almoço. Meu pai espera-me na estação. «Estás mais magro», diz-me ao ver-me. Sorrio como a dizer que sim. Sem mais uma palavra seguimos calados, um ao lado do outro: não temos mais nada, nem mais ninguém de quem falar. Ele sabe que não tornaremos a ver-nos. «Voltas amanhã?», perguntou, como se o não soubesse, definitivamente.

A casa de chá


Como se contadas, a uma e uma, as folhas depositadas carinhosamente, a água fervida por duas vezes e o bule, enfim, escaldado primeiro, purificado depois e arrefecido até estar tão morno como quando tudo começara. Um lento cerimonial, acompanhado de bolinhos de massapão. Reina no lugar um silêncio pacífico, povoa-o uma semi-treva dormente. É a casa de chá. As portas eternamente abertas a quem entra, as janelas disponíveis à Natureza. Lugar da paz celestial, lembro-me do odor, como se esta velha fotografia mo devolvesse e com ela a memória de um nome, Oolong, o chá do dragão negro.

7.1.06

A misericórdia do esquecimento



Hoje a Natureza reocupou o seu lugar, por sobre a selvajaria dos homens: a água lavou o sangue, o silêncio calou os estrondos dos canhões. Reflectida na água, a ponte é mais do que o lugar, é o momento. Talvez nesta tarde gélida o mundo pudesse suspender-se por um instante, sobre o rio Drina e sua ponte. Para um homem só, debruçado no parapeito, olhando o ondulado tacteante da água, a História não passou por aqui. Quando souber da carnificina, fará por esquecê-la. A memória dói, os deuses misericordiosos abreviam a dor.

A beleza comovente


Primeiro, foi o homem que poderia ter sido o seu, a morrer-lhe, antes de que ao menos a ideia se tivesse concretizado. Depois, foram, inevitavelmente, os parentes, os amigos, os conhecidos. Ficou a casa. Com a idade, cada vez menos ágil, restou o quarto, enfim esta cama. À medida que o dinheiro rareava, foram-se indo as criadas. Restava eu, quando tinha tempo e nunca tinha tempo. Não fosse uma vizinha, haveria dias em que nem o almoço lhe chegaria. Encontraram-na um dia, oitenta anos de uma beleza comovente, uns olhos azuis límpidos de paz. Os cães ladravam furiosamente, correndo enlouquecidos, pela quinta. Um ar de tragédia e de morte povoava o lugar. Hoje é um hotel de charme. Indiferentes, esquecidos, tudo esquece, há quem se ame nesta cama, nesta mesma cama.

5.1.06

Uma mancha na consciência


Instalávamo-nos ali no Verão. Sentávamo-nos numa das mesas do fundo. Por eu ser muito pequeno, os criados traziam uma almofada para poder chegar à mesa. Lembro-me dos imensos guardanapos, densos de goma, os copos de pé alto, em cristal, os talheres pesados, com um toque de prata. Nesse tempo um jantar obrigava a «hors-d'oeuvre», dois pratos, fruta e doce. Ah! E sopa, e como eu odiava sopa. Uma vez, sem querer, porque nessa idade todas as asneiras são sem querer, e por detestar sopa de ervilhas, a má vontade em a comer deu num pingo a macular a alvíssima toalha. Ainda hoje ele me pesa na consciência. É numa das mesas do fundo deste magnífico Hotel das Termas. Olhando para a fotografia, acho que a vejo, nítida, vergonhosa, eterna, como se aquele mundo de excelência nunca mais tivesse sido perfeito, a partir daí.

4.1.06

O colar verde

Aglomeram-se e amontoam-se debaixo de improvisados toldos, protegendo-se de inesperadas chuvas, formigando um surpreendente comércio. De quando em vez há um que grita ladrão. Nada sucede: uma breve correria, rápida e inconsequente, como se o ritual exigisse de cada um uma réplica animada na defesa do que é seu. A um canto uma velha desdentada sugere-me, com requebros de oferta, uma amarelada farinha ou uns peixes esquálidos de secos enfiados num pau. Nego-me à velha, mas para me enfeitiçar num colar de bagas esverdeadas de pedras que não sendo preciosas são precisosidades de cor. Não serve para nada, nem tenho a quem o ofereça, é só por ter estado aqui e para que, olhando para ele, fosse como se aqui tivesse estado.

3.1.06

Uma questão de tempo

Não é o estar a nevar, é a sensação de subitamente o mundo ter desaparecido em redor, refugiando-se no conforto dos seus interiores. Ausente tudo, o que resta é o momento instantâneo que vale a pena ser vivido. Não se sobrevive muito tempo cá fora, mas morre-se mais depressa lá dentro.

2.1.06

O sol e a cor dos céus

Vim a este lugar, em nome da minha memória. E olho para isto, a fachada em ruínas, como hoje me vi, reflectido num vidro de uma montra. A vida encarrega-se, mesmo quando se não viveu, de marcar a sua passagem. Há, na parede lateral desta difícil tristeza, o reflexo do sol, carcomendo a cor, que nos destroços do que deixaram os dias de erosão e as noites de rapina, ainda era o momento celestial que restava.

1.1.06

O universo de certezas

Combinou-se que seria ali. Por momentos julguei tê-la perdido, as ruas semelhantes, labirínticas, antigas, cruzando-se como num infinito de possibilidades enganadoras. Penso que, apesar de desorientado e incerto, cheguei muito antes da hora. Ao fundo, albergadas pelas árvores miúdas, umas mesas de ferro de uma improvisada esplanada, proporcionavam o lugar da espera. Estava sol e apetecia ficar prolongando o fruir da manhã. Chegou enfim, minutos depois do momento combinado, um ser de tal forma feminino que faria qualquer sentir-se homem. Por um segundo o universo imobilizou-se, o meu mundo de certezas vacilou. Aquele parecia o local e o tempo. Só que, afinal, nada era comigo. Na mesa do lado, precisamente a que ficava ao lado de mim, alguém se levantou, abraçando-a e seguindo, incertos mas decididos, esvairam-se no horizonte vazio do que me restou.