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28.1.06
O dia da visita
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26.1.06
A mala por fazer
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24.1.06
O sobejo da velha mala
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Muitas vezes é como um favo numa colmeia, onde se acotovelam gerações. A promiscuidade dos sons, a repugnância dos cheiros, o desventrar de todas as intimidades. Os ganidos do que dói, o estretor de quando se morre, o soluçar baixinho os males de amor, tudo se sabe e nada se evita. De quando em vez vaga um cubículo, o último porque alguém se jogou pela janela abaixo. Morava ali, incógnito, há poucos meses. A renda, penso, ficou por pagar, a única mala que tinha como coisa sua, de tão velha, ninguém a quis.
23.1.06
Mayday, mayday
Às vezes é haver Deus, ou ir-se sentado no banco de trás, por ter chegado ao aeroporto no último minuto. Outras vezes teria sido bem melhor ter terminado tudo ali. Ficou o sobejo desta fotografia: os amigos espantam-se em larga ênfase, as tias falam em milagre, com uníssona devoção, e uma pessoa, mudando de assunto, vira a página, já esquecido, quase, de como foi.
22.1.06
A restituição dos afectos
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17.1.06
A decência de ficar
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16.1.06
O estreito dos Dardanelos
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15.1.06
O raio verde
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11.1.06
Bem-vindo, pois!
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Há, nesta masmorra, um túnel que eu escavo diariamente ansiando por uma fuga. Começou por ser uma ideia, depois um sonho. Um dia acordei e era uma ambição, nas noites frequentes de insónia, um pesadelo. Há nesta ideia de escavar daqui a minha saída, uma ocupação contra a loucura, a esperança num dia depois. Esta manhã, porém, vazio de mim e ausente de tudo, aqui precisamente neste canto de confluência do onde durmo com a latrina em que nos tornámos, descobri a mágoa de um achado, o de que o túnel, esse subterrâneo nocturno cavado com as minhas mãos, rasgado com estas unhas e perseverado com os próprios dentes, na loucura demente de o ter feito, desembocara onde começara. Estava de volta aqui, muitos anos depois.
Uma ideia apenas
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Às vezes é só mesmo a vertigem da ideia, a de uma doença como solução. Confinado a uma cama, recluso numa enfermaria, eis aí a justificação plausível para se poder parar. E, no entanto, quantas vezes nem esse favor se recebe da vida. Morre-se num dia ocupado, deixa-se o embaraço da agenda a meio, a vergonha de compromissos por cumprir, a fatalidade das responsabilidades por honrar. Aos amigos, mesmo, quantas vezes calha mal o dia do funeral. E o corpo, resto inerte do que houve, a aguardar numa capela de igreja porque é mais rápido assim, o serviço mortuário religioso está mais à mão. Às vezes é só mesmo uma ideia, mas a vida vertiginosa em que se vive, nem lhe dá tempo para viver, mortos que estamos e de cansaço.
9.1.06
Arco de Baúlhe
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A linha marca o intervalo e a importância. Cheguei num pouca-terra interminável, o vento gelado a entrar por todas as frinchas de uma carruagem de museu, a locomotiva aos sacões. A arrastar-se, qual chiante carroça de bois, o comboio, vagaroso, entrou finalmente na diminuta estação. Um friso de casinhas, caiadas a branco, desfilam-me agora pela janela, uma sucessão de nomes conhecidos: «Senhoras», «Homens», o armazém dos sobressalentes e por fim, edifício principal, gabinete do chefe da estação e, eis, «Arco de Baúlhe», completo enfim o ritual familiar da entrada na gare. Cheguei. Não é, como da outra vez, o correio da noite, comboio fantasma do arranca e pára, viajante nocturno, visitante preguiçoso de todo o lugar ermo e apeadeiro vazio; nem o rápido das cinco, o «foguete» da minha infância, o «Sud Express» da minha juventude, o «Alfa» dos dias de hoje. É assim uma coisa intermédia, o comboio regional que vai dar entrada na linha número três. Desço, comigo apenas uma mala camba e um saco plástico amarfanhado, o resto do improvisado almoço. Meu pai espera-me na estação. «Estás mais magro», diz-me ao ver-me. Sorrio como a dizer que sim. Sem mais uma palavra seguimos calados, um ao lado do outro: não temos mais nada, nem mais ninguém de quem falar. Ele sabe que não tornaremos a ver-nos. «Voltas amanhã?», perguntou, como se o não soubesse, definitivamente.
A casa de chá
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Como se contadas, a uma e uma, as folhas depositadas carinhosamente, a água fervida por duas vezes e o bule, enfim, escaldado primeiro, purificado depois e arrefecido até estar tão morno como quando tudo começara. Um lento cerimonial, acompanhado de bolinhos de massapão. Reina no lugar um silêncio pacífico, povoa-o uma semi-treva dormente. É a casa de chá. As portas eternamente abertas a quem entra, as janelas disponíveis à Natureza. Lugar da paz celestial, lembro-me do odor, como se esta velha fotografia mo devolvesse e com ela a memória de um nome, Oolong, o chá do dragão negro.
7.1.06
A misericórdia do esquecimento
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Hoje a Natureza reocupou o seu lugar, por sobre a selvajaria dos homens: a água lavou o sangue, o silêncio calou os estrondos dos canhões. Reflectida na água, a ponte é mais do que o lugar, é o momento. Talvez nesta tarde gélida o mundo pudesse suspender-se por um instante, sobre o rio Drina e sua ponte. Para um homem só, debruçado no parapeito, olhando o ondulado tacteante da água, a História não passou por aqui. Quando souber da carnificina, fará por esquecê-la. A memória dói, os deuses misericordiosos abreviam a dor.
A beleza comovente
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Primeiro, foi o homem que poderia ter sido o seu, a morrer-lhe, antes de que ao menos a ideia se tivesse concretizado. Depois, foram, inevitavelmente, os parentes, os amigos, os conhecidos. Ficou a casa. Com a idade, cada vez menos ágil, restou o quarto, enfim esta cama. À medida que o dinheiro rareava, foram-se indo as criadas. Restava eu, quando tinha tempo e nunca tinha tempo. Não fosse uma vizinha, haveria dias em que nem o almoço lhe chegaria. Encontraram-na um dia, oitenta anos de uma beleza comovente, uns olhos azuis límpidos de paz. Os cães ladravam furiosamente, correndo enlouquecidos, pela quinta. Um ar de tragédia e de morte povoava o lugar. Hoje é um hotel de charme. Indiferentes, esquecidos, tudo esquece, há quem se ame nesta cama, nesta mesma cama.
5.1.06
Uma mancha na consciência
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Instalávamo-nos ali no Verão. Sentávamo-nos numa das mesas do fundo. Por eu ser muito pequeno, os criados traziam uma almofada para poder chegar à mesa. Lembro-me dos imensos guardanapos, densos de goma, os copos de pé alto, em cristal, os talheres pesados, com um toque de prata. Nesse tempo um jantar obrigava a «hors-d'oeuvre», dois pratos, fruta e doce. Ah! E sopa, e como eu odiava sopa. Uma vez, sem querer, porque nessa idade todas as asneiras são sem querer, e por detestar sopa de ervilhas, a má vontade em a comer deu num pingo a macular a alvíssima toalha. Ainda hoje ele me pesa na consciência. É numa das mesas do fundo deste magnífico Hotel das Termas. Olhando para a fotografia, acho que a vejo, nítida, vergonhosa, eterna, como se aquele mundo de excelência nunca mais tivesse sido perfeito, a partir daí.
4.1.06
O colar verde
3.1.06
2.1.06
O sol e a cor dos céus
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1.1.06
O universo de certezas
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